Sinopse
O principal objetivo deste ensaio
é fazer uma abordagem à obra de Martinho Costa, um artista plástico em início
de carreira acerca do qual ainda não há uma reflexão muito profunda. A partir
de certa altura, sensivelmente o fim do mestrado, Martinho Costa decide dar um
novo rumo ao seu trabalho. Passa de uma abstração influenciada pela escola de
Nova Iorque para uma linguagem figurativa de onde ressalta um olhar para o
passado em termos de tradição pictórica. A influência Impressionista é visível
nos seus óleos, assim como outras influências incontornáveis a nível da
figuração contemporânea: Gerhard Richter e Luc Tuymans. O processo de trabalho
de Martinho Costa será também um assunto abordado tentando perscrutar o seu
universo estético. Para este ensaio foi realizada uma entrevista ao artista e
foram também usados alguns escritos disponibilizados pelo próprio.
Como
tantos outros, Martinho Costa é um artista de uma geração emergente que
regressou à figuração, embora mediada pelo uso da fotografia. Martinho não
pretende copiar a fotografia transformando a pintura num mero sucedâneo
fotográfico, mas antes, apresenta uma marca pictórica pessoal de uma
expressividade invulgar, que faz com que a sua pintura nunca compita com o
modelo fotográfico usado.
Muitas
das escolhas feitas em relação aos assuntos tratados neste ensaio, foram-no com
o intuito de terem pontos convergentes com a minha pintura.
Palavras-chave:
Figuração, Pintura, Imagem, expressividade, Contemporânea.
Resumo Biográfico
Martinho
Prazeres Costa nasceu em Fátima em 1977 de onde só saiu em 1996 para entrar na
Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Em 2003 conclui o Masters in Teoria y
Prática de las Artes Plásticas Contemporâneas na Universidad Complutense de
Madrid. Vive e trabalha atualmente em Lisboa.
1- Martinho Costa numa das suas intervenções em espaço
público
Martinho trabalha principalmente
em pintura e em vídeo/animação, tentando compreender como as imagens que nos
rodeiam podem ser incorporadas nestes meios de expressão. Propõem-se revisitar
os grandes temas clássicos da história da arte usando-os como reflexão para a
sua obra atual. Com isto não pretende estagnar no tempo mas sim transpor essas
temáticas para a atualidade. Martinho embora utilize o óleo nas suas pinturas,
com a carga histórica que esse meio encerra, também utiliza meios informáticos
no seu processo de trabalho como pesquisas no Google, redes sociais, utiliza
projetores para desenhar e muitas outras marcas do mundo contemporâneo.
Do
abstrato ao Figurativo
Martinho Costa é hoje um artista plástico assumidamente figurativo, mas
nem sempre assim foi. Durante a sua formação artística e nomeadamente nas suas
primeiras exposições como estudante
“finalista”, Martinho estava muito próximo da estética da Escola de Nova Iorque[1]
a qual tinha como principais expoentes Mark Rothko, Willem de Kooning, Adolph
Gottlieb, Barnett Newman, Archile Gorky e Jackson Pollock. Foi também bastante
influenciado nesta altura por Sean Scully.
2- Martinho Costa, sem
título, 2002, Acrílico sobre MDF.
A partir de determinada altura Martinho Costa sente que o assunto se está
a esgotar. A essência escultural da pintura abstrata e a escassa componente de
elementos formais colocam esta abordagem estética próxima da rotura.
“…Era um trabalho muito estreito, que
eu autoimpus que fosse assim: estreito, tinha poucos elementos formais. Eram
campos monocromáticos que tinham muito a ver com escultura. Pensava muito a
parte das proporções, tinham uma espessura,
havia peças que eram assentes no chão. Eram trabalhos que iam pegar muito na
estética minimalista. Estava bastante interessado na Escola de Nova Iorque e
acabei por ficar um bocado cansado daquela linguagem. Em termos de processo de
trabalho aquilo acabou por se tornar um bocado repetitivo e apeteceu-me começar
a pensar em outros termos, a pensar mais na atualidade, nas imagens da
atualidade e acabei por aproveitar, quando saí da faculdade. Fui para Madrid,
fiz o mestrado e aí fiz tábua rasa do trabalho anterior e comecei tudo de novo.
Comecei por fazer as pinturas das cameras de videovigilância… foi assim uma
mudança…” (Costa, 2012)
As primeiras pinturas figurativas
datam de 2003 e quase de uma forma inconsciente Martinho Costa abordava uma das
grandes temáticas da arte contemporânea: as sociedades de controlo. Uma espécie
de panóptico de Foucault. O nome da série de pinturas que reproduz as imagens
das cameras de vigilância de tráfego chama-se Camera 24. Neste caso, Martinho Costa estava simplesmente fascinado
pelo tempo real e pelo não-acontecimento.
3- A ponte de Londres, 2003 Óleo sobre MDF
A
realidade mediada pela fotografia
“Qualquer imagem
bidimensional é passível de ser pintada.” (Costa, 2012)
Esta é uma das bases do pensamento
estético de Martinho Costa, sendo que a fotografia é uma forma de obter uma
imagem bidimensional. Colocando a questão de um ponto de vista prático e
transportando-a para o processo de trabalho deste artista, poder-se-á dizer que
Martinho Costa apropria-se de imagens, na maioria das vezes, projeta-as num
suporte e seguidamente pinta-as a óleo, sem estudos prévios. As duas fontes
principais deste artista são: primeiro as imagens
encontradas, depois as imagens
produzidas, que são incomparavelmente em menor quantidade. As imagens encontradas são todas as imagens
que o artista encontra na net, nas
revistas, jornais, televisão etc. As imagens produzidas são aquelas que o
próprio artista fotografa mas sem a preocupação de as tornar fotografias
demasiado elaboradas. Podemos chamar-lhes mais “snapshots”, ou instantâneos.
Todo este processo de trabalho
levaria a que fosse criado uma espécie de arquivo de imagens, isto se
fizéssemos um paralelismo com a obra de Gerhard
Richter[2]
e o seu Atlas[3]
sendo que na obra de Martinho Costa a atuação é diferente. Martinho assume o
arquivo de imagens como um arquivo partilhado, ou pelo menos ao dispor de
todos.
Ele cria pastas temporárias no seu computador que alimentam os seus ciclos de pinturas e no final apaga-as e devolve-as ao fluxo contínuo das imagens. Martinho não alimenta nenhuma ligação afetiva com as imagens modelo, as imagens mediadoras do mundo real. Por outro lado existe outro aspeto bastante importante na obra deste artista: não pretende em momento algum competir com a fotografia, afastando-se assim de qualquer ancoragem ao fotorrealismo e é também muito cuidadoso quando escolhe imagens para pintar: desconfia sempre de imagens “bonitinhas”.
Ele cria pastas temporárias no seu computador que alimentam os seus ciclos de pinturas e no final apaga-as e devolve-as ao fluxo contínuo das imagens. Martinho não alimenta nenhuma ligação afetiva com as imagens modelo, as imagens mediadoras do mundo real. Por outro lado existe outro aspeto bastante importante na obra deste artista: não pretende em momento algum competir com a fotografia, afastando-se assim de qualquer ancoragem ao fotorrealismo e é também muito cuidadoso quando escolhe imagens para pintar: desconfia sempre de imagens “bonitinhas”.
Martinho Costa funciona quase sempre por séries de pinturas. Fascina-o os
grandes temas clássicos da arte: A ruina, a pintura histórica, mas sempre com a
intenção de as atualizar de as mostrar revistas, mas sempre abertas em termos
de uma certa narrativa. Martinho não pretende tomar partido nem ser moralista,
assume uma certa neutralidade. Interessa-lhe a linguagem da pintura: Matéria,
cor, pincelada, enquadramento… interessa-lhe aquilo que é a pele da pintura.
4- Starfort,
2006, 113x150, óleo sobre MDF (5 partes). Pintura de cariz histórico de
Martinho Costa baseada em imagens de gráficos de jogos de computador
5-Capricho 55,
inspirado nos caprichos de Goya
“O diário de Robert Stern”.
“O diário de Robert Stern” é o título de uma série de 95 obras de
Martinho Costa que daria título a uma das últimas exposições deste artista na
galeria 111.
Este ciclo de pinturas, também
existem desenhos e vídeos de animação, datadas de 2011 reveste-se de particular
interesse pois levanta questões éticas a vários níveis. Por um lado revela o
artista enquanto voyeur, alguém que
não pretende tomar partido, que apenas se limita a observar de uma maneira
neutral, por outro lado mostra Robert Stern, uma pessoa real que vive na
Pensilvânia e que tem como obsessão fotografar os acontecimentos da sua vida,
desde os mais banais aos mais especiais. Fotografa Amber, a sua namorada de uma
forma sistemática e os seus amigos, os seus animais de estimação e deposita
tudo isso no Flickr, chegando a
atingir a soma de 15 000 imagens e vídeos pessoais.
Martinho Costa construiu uma
narrativa acerca da vida desta personagem real que expõe a sua vida como se de
um big brother se tratasse.
Provavelmente Robert Stern não sabe que é uma personagem central de um documentário pintado, montado por um
artista plástico.
6- Três pinturas de Amber, a namorada de Robert Stern
Se
analisarmos estas pinturas do ponto de vista formal podemos constatar que a
aplicação da tinta, pincelada grossa e imediata sugere-nos que a sua execução é
rápida muito à imagem dos impressionistas. A sua pintura adquire a dimensão de
instantâneo mas pictórico com uma expressividade que não se encontra no
instantâneo fotográfico: é assim o trabalho de Martinho Costa, rápido, olhando
as imagens que utiliza para pintar como se fossem descartáveis e ele fosse o “flaneur” que entre elas deambula.
Diálogos
com o espaço exterior
Neste
capítulo apresentar-se-á uma nova variante no trabalho de Martinho Costa
iniciada em 2011.
Sentindo uma certa necessidade em fazer
circular trabalhos e de os retirar de dentro do seu espaço de trabalho, o
artista sente-se tentado a pintar no espaço exterior e inicia aqui uma série de
pinturas em espaços públicos tentando com elas dialogar com a envolvente
espacial. Este procedimento poderia levar-nos a confundir estas intervenções
com graffiti, mas neste caso como
assume o próprio artista a realidade é outra.
“Eu sou um pintor e também faço desenhos
animados. Também fiz um documentário, portanto, não sou um graffiter (…) Os
graffiters tem muitas vezes uma atitude de impor uma moral às pessoas que me
irrita um bocado (…) ok, é a coisa deles, mas eu vejo isto como intervenções ao
ar livre. Pinturas que eu deixo a óleo. Muitas, a grande maioria pintadas no
local, outras são pintadas no atelier e deixadas no local e ficam lá e o que eu
faço com essas pinturas é dialogar com o local… (Costa, 2012)
7-Pintura a óleo sobre base de poste de alta tensão,
feita em Boleiros numa zona de serra.
Martinho Costa assume que nestes
casos a pesquisa de imagens é menos aleatória. A busca de imagens é
direcionada, pois a intenção é haver um diálogo com o local. Também verificou
que ao travar estes diálogos surgiam mais vezes pintadas imagens ligadas à
história da arte, normalmente todas de pequenas dimensões e com um caracter
intimista. Martinho está interessado também no aspeto efémero das suas obras e
por vezes, ou quase sempre, no acesso às suas obras. Nem sempre estão em locais
acessíveis. Não se encontram ali ao virar da esquina!
A Pedreira e a
Memória
A pedreira é uma das pinturas de
Martinho Costa que pertence a um ciclo de obras intitulado: “A primeira pedra”, um tema proveniente
da iconografia bíblica. Na bíblia este tema surge ligado a um apedrejamento, um
ato bárbaro situado ao nível do primitivo. A barbárie assim vista é uma espécie
de ruína pré civilizacional, que por vezes pode emergir e impor-se à razão. É
algo que está também impresso na memória de Martinho Costa, muito para além da
metáfora da ruína. Estas imagens fazem parte da infância de Martinho Costa que
as visitava vezes sem conta.
8-Pedreira 1, óleo sobre MDF, 120X80 cm 2012
Na atualidade, o
artista utiliza essas ruinas como matéria da memória. Fotografadas no presente,
elas são reconstruidas no suporte da pintura talvez como quem recorda o passado
ou simplesmente as transforma em objetos estéticos. Existem nestas imagens
sintomas de um romantismo que remete para Friedrich
e para a fragilidade da vida humana. Remete também para o religioso, qual “Gólgota” de Andrea Mantegna. Muitos
preferem apenas chamar-lhe espiritual, talvez Martinho Costa prefira que lhe
chame assim.
Nos dias que correm,
o ser pintor implica uma certa espiritualidade, uma espécie de fé ou crença.
Implica também ser perseverante e inabalável nas convicções que são muito
diferentes de ideologias. Como Martinho Costa, é necessário voltar à pedreira e
encontrar os destroços da memória para que com esses destroços se construa uma
“outra coisa” como referia Walter
Benjamin.
9-Pedreira 2 óleo sobre MDF, 120X80cm 2012
Paralelismos
Chegado a esta altura do ensaio
achei pertinente apresentar pontos de contacto entre pensamentos estéticos e
respetivas obras. Tal como Martinho Costa também me inscrevo numa linhagem de
pensamento herdeira da estética Richteriana,
que utiliza a imagem bidimensional como mediadora da realidade. Gerhard Richter
afirma a possibilidade da pintura que se renova constantemente, nem que para
isso tenha que se fazer tabla rasa
dessa mesma pintura. Martinho Costa afirma a pintura dando prioridade ao
pictórico e à plasticidade mesmo que o modelo das suas obras sejam fotografias
com motivos banais.
10-Horácio Borralho Nosferatu
Danois, óleo s/MDF, 28X16 cm 2012
11-Horácio Borralho, Deserto
Peixe, óleo s/MDF, 28X16 cm, 2012
Comparativamente, nas minhas obras, também elas feitas tendo como modelo
imagens na sua grande maioria apropriadas, exploro a tensão existente entre
elas. Como Eisenstein, produzo montagens de imagens que podem causar estranheza
e choque nas suas associações. Estas produzem cortes nas suas narrativas que
podem conduzir a uma tentativa do espectador de criar uma imagem mental a partir
de duas ou mais associações de imagens. Em última análise, interessa-me o
pictórico e o aspeto feito à mão nas minhas pinturas.
Conclusão
Foi
aqui apresentada uma reflexão acerca da obra de Martinho Costa desde os seus
tempos de estudante em que a abstração era a sua linguagem estética até aos
dias de hoje, altura em que Matinho Costa consolida a sua faceta de artista
figurativo que trabalha recorrendo a imagens fotográficas muitas vezes
apropriadas de várias fontes.
Foi
também aqui aflorado qual o interesse de Martinho Costa nas imagens
fotográficas e também no tipo de imagens lhe interessa: aquelas que ainda não
estão muito resolvidas enquanto imagens, aquelas que são banais, como as que
Robert Stern publica no Flickr.
Martinho interessa-se pela plasticidade da sua pintura, pretendendo construir
algo de estético partindo de imagens banais.
Abordou-se
também o diálogo que Martinho Costa trava com locais encontrados quase ao
acaso, muitos deles em zonas recônditas e de difícil acesso, demonstrando que é
sempre possível pintar mesmo quando a obra é efémera.
No
capítulo: A Pedreira e a Memória, explora-se uma vertente mais poética e
intimista expressando o conhecimento de Martinho Costa a um nível mais
restrito, quase familiar. Por fim, foram apresentados alguns paralelismos entre
a obra de Martinho Costa com a de Gerhard Richter, uma referência comum, e a
minha obra de pintura: a crença na prática da pintura e a utilização de imagens
bidimensionais como modelo.
Martinho
Costa é um artista em maturação que trabalha incansavelmente e por isso a sua
obra é consistente. É um dos artistas que utiliza a pintura como principal meio
de expressão mais promissores da sua geração.
Agradecimentos
Quero
agradecer a Martinho Costa a disponibilidade que demonstrou durante a
realização deste ensaio. Na realização da entrevista, no disponibilizar de
algumas imagens de obras antigas, mostrando-se sempre disponível para conversar
e esclarecer algumas questões que fossem surgindo no decorrer do trabalho.
Bibliografia
Costa, M., 2012. Entrevista
com Martinho Costa [Entrevista] (23 novembro 2012).
Facultad de Bellas Artes
Universidad Complutense de Madrid Departamento de Pintura, 2003. In: Máster
en teoria y prática de las artes plásticas contemporáneas 03. Madrid:
FELSAN, Realizaciones gráficas, pp. 118-121.
OPWAY, 2009. Martinho
Costa- Reconstrução. OPWAY ed. Lisboa(Lisboa): s.n.
[1]
Escola de Nova Iorque- Entre os anos 40 e 50 do séc. XX existiu uma corrente na
América também conhecida como Expressionismo abstrato ligada ao crítico de arte
Clement Greenberg e que derivava das Vanguardas Europeias. Dentro desta
corrente havia o grupo descendente de Picasso e outro que se revia na cor de
Matisse.
[2]
Gerhard Richter, Artista plástico alemão nascido em Dresden em 1932
[3]
Atlas, Uma compilação de fotografias, estudos e maquetes que o artista Gerhard
Richter foi acumulando durantes décadas e que agora se converteu em objeto de
arte sendo ciclicamente exposta em museus.