“A civilização corrompe, o
engenho humano produz, crosta sobre crosta, armaduras ferozes, que defendem e
impedem o contacto com a pele de toda a coisa, com as forças elementares,
tapados quase todos os poros. Como se a atmosfera da civilização estivesse
embrulhada em papel de celofane, barato, isolando-a de Deus.” Maria
Filomena Molder, A Imperfeição da Filosofia
O
mundo transformado em simples produto humano, vidas configuradas em imagens
produzidas por uma força motriz desconhecida, avassaladora, inclemente, almas
rasgadas a expor a ferida que o facto de estar vivo implica: este poderia ser o
retrato dos tempos que correm. Uma espécie de consciência dos efeitos e
transformações que a vida na cidade moderna implica e que é vista como uma
espécie de continua intoxicação causada pela própria capacidade humana de
produção, de alteração, de inebriação. Mas esta já não é uma força potente e
produtiva, como porventura terá sido o impulso dionisíaco, mas sim um elemento
de destituição, de corrupção. Não está em causa um retrato reacionário ou
nostálgico, antes trata-se de um aguçar da atenção para o mundo e da
constatação dos impedimentos que continuamente são erguidos entre nós –
cidadãos de pleno direito – e o mundo, a natureza e os outros homens. A
possibilidade de comunidade humana desfaz-se e em vez dela surge uma espécie de
isolamento e encerramento de cada um em si próprio, impossibilitados de
estabelecer qualquer relação com aquilo que nos rodeia. Este isolamento e
individuação radical podem surgir com tons, sons e formas encantatórias, mas
este maravilhamento, face ao qual facilmente sucumbimos, é a armadilha
produzida pelo engenho humano corrosivo que Maria Filomena Molder apresenta.
Não se trata de um despenhamento no exterior como forma de reencontro consigo
próprio, mas sim de um descentramento, de um perder-se irremediavelmente.
Esquecidos de nós próprios, isolados e impossibilitados de qualquer forma de
contacto resta-nos a vertigem sobre o nosso próprio rosto (produto do nosso engenho):
uma espécie de Narciso e Eco que já não podem reconhecer outro rosto que não o
seu e outro som que não o da sua própria voz.
Se esta poderia ser a descrição de
uma determinada experiência da modernidade – veja-se Baudelaire, Rilke e Celan
-, ela também pode ser a apresentação de uma determinada disposição e ambiente
civilizacionais ou progressistas. É nesta segunda possibilidade que podemos
integrar as pinturas de Martinho Costa. Não se trata de uma integração num
sistema que aniquile a sua especificidade e singularidade – o seu mistério -,
mas sim do gesto de detectar a sua familiaridade com elementos comuns, da
descoberta da sua afinidade com uma determinada comunidade: estética, política
e humana. As suas pinturas não são simples gestos críticos, tratam-se de
paragens durante as quais nascem retratos de um mundo reconhecido como sendo o
nosso. Os problemas que estas pinturas colocam são ambíguos, mas é uma
ambiguidade produtiva porque se constituí como abertura para as tensões que
caracterizam o olhar. Tratam-se de paisagens urbanas não originadas na fantasia
gestual do pintor, mas sim na linguagem supostamente pura – incontaminada - da
matemática. Estes retratos de uma certa configuração da vida transportam as
marcas da realidade digital: imagens recolhidas num jogo de computador que
simula a cidade perfeita - uma espécie metáfora de um mundo sarado das suas
aflições e livre dos despenhamentos dos seus vôos - e que depois são
transpostas para a tela.
Que se trate de um jogo, não com a
pintura, não significa tratar-se de uma brincadeira, daquelas que
inconsequentemente fazemos para matar o tédio do tempo que passa. O jogo é nas
pinturas de Martinho uma metáfora para dar conta de uma face, a maior parte das
vezes escondida e desapercebida, que o real tem sempre: o seu aspecto de jogo,
de encenação, de artificialidade, de contínuo afastamento da origem. E é
precisamente desta distância que se trata: incorporada e transformada numa
espécie de segunda natureza e assumida como o suporte da transformação, recriação
e manipulação que o artista faz das imagens recolhidas nesse mundo não
contaminado pela demência a que o nascimento nos condena a todos. Parece
estarmos todos na situação absurda em que a loucura é transformada em
normalidade e nos esquecemos daquilo que o nascimento necessariamente implica.
Ao contrário de Hamlet – que mesmo louco não perdeu os pontos cardeais que
possibilitam a direcção, o sentido e o reconhecimento [1] – todos
parecemos partilhar de uma espécie de alucinação em que todas as direcções
ficam distorcidas e irreconhecíveis. E é deste absurdo, existencial e
pictórico, que as pinturas de Martinho se alimentam. É como se a
artificialidade de uma condição humana inventada fosse o material no qual os
gestos do pintor encontram o seu ponto de origem e a sua chegada.
Pouco importa saber qual é o
processo de transposição e de manipulação da realidade digital para a realidade
pictórica, decisivo é o modo como essa mesma imagem reaparece aos nossos olhos
e ao manter a sua identidade ganha um princípio de constatação crítica. Parece
que a clonização a que as diferentes realidade são sujeitas é uma estratégia
particular de reconciliação com as diferentes configurações do real. Não existe
espaço para movimentos de recolha etnográfica e/ou antropológica, mas são
momentos de pacificação das energias humanas com o estado inevitável em que a
paisagem – urbana, íntima, fabril – vai sendo construída. O espanto, que pode
ser lido como recusa, é daquele que com o olhar procura o ainda não corrompido
e só encontra a mão humana: é como se o real tivesse sido transformado num
espelho colossal e sempre que para ele olhamos só conseguimos ver o nosso
próprio rosto. É inevitável que o movimento, em primeiro lugar pictórico e
depois abstracto, que encontramos nestas pinturas possa ser assumido como uma
espécie de crítica social e civilizacional. O positivismo – optimista e
progressista que reina nas mentes – é que aqui mostrado no seu lado mais rude,
na sua lógica de mera acumulação e de acrescento: casas iguais, talvez com
vidas semelhantes e padronizadas, multiplicam-se indefinidamente até se
transformarem numa massa indistinta e amorfa. O mistério da singularidade –
conquista dionisíaca e celebração nietzschiana – é eclipsado e no seu lugar
surge unicamente a imagem da série: simples, contínua, padronizada, não
espontânea.
A perspectiva aérea – suposto ponto
de vista daquele que quer ver as coisas sem com elas se confundir e assim
tentar ver verdadeiramente como as coisas são – é o mecanismo encontrado para a
neutralidade, procurada e ensaiada, daquele que vê e depois transforma os
produtos da sua visão em imagem. Esta distância, metódica e crítica, funciona
como uma espécie de vôo no qual, em primeiro lugar, o pintor e, depois, o
espectador se encontram numa espécie de fala e visão comuns. O detalhe,
necessariamente esbatido e por vezes indistinto, é sacrificado em nome da visão
do todo, em nome da abertura de horizonte e de perspectiva nos quais é a
geometria globalizante e envolvente que surge em primeiro plano. Ver de cima,
como se não fizéssemos parte disso que observamos, é a possibilidade da pintura
de Martinho Costa. É verdade que não se trata de uma visão natural – mas
lembre-se, uma vez mais, que as imagens digitais são possibilitadas pelo
engenho humano e que o conceito de ‘natural’ é só mais um produto das
capacidades produtivas, culturais e simbólicas dos homens – mas de uma
possibilidade actuante, real, existente.
A
artificialidade deste modo de ver as coisas é um facto, mas é um elemento
necessário e uma consequência da perspectiva que o artista quer construir: é
como se subitamente fosse possível ver o mundo do lado de fora, não estando
nele, como se fossemos meros espectadores de uma realidade que se desenvolve
sem qualquer intervenção humana. Deste modo o mundo surge – à boa maneira de
Nietzsche – como um imenso cenário no qual as vidas são jogadas e encenadas
como se de uma peça de teatro se tratasse: a diferença é que num palco, e na
arte em geral, os corpos parecem fugir e escapar à gravidade que a vida na
terra – condição da existência – sempre exige e nestas pinturas a gravidade
faz-se sentir, reclama o reconhecimento da sua existência e exige que lhe sejam
prestadas as devidas homenagens. Por isso às paisagens urbanas e residenciais
idílicas, Martinho mostra/pinta as fábricas das quais se advinham as atmosferas
internas reinantes. Deste modo, aquele que parecia estar à beira do paraíso
surge no seu carácter grave e a condição paradisíaca é mostrada enquanto
paradoxo, enquanto local impróprio para um corpo habitar, enquanto máscara do
fundo, que se advinha doloroso, necessário às metamorfoses de um ser humano.
Nuno Crespo
Out/2005
[1] “I am but mad north-north-west. When the wind is southerly, I know a
hawk from a handsaw. / Só estou louco a norte-noroeste. Se
o vento é de sul, sei muito bem distinguir uma águia de um serrote.”
Shakespeare, Hamlet, II Acto, II Cena, trad. António M. Feijó, Relógio D’Água
Editores.