Pinturas sem horizonte - João Pinharanda

As pinturas de Martinho Costa fazem-se tão perto dos motivos que são, quase sempre, pinturas sem horizonte. 

Tomadas de perto, sobre pormenores de uma realidade maior que raramente se revela, são também pinturas que iludem as suas dimensões (pequenas, médias ou grandes) para aspirarem a uma escala que as faria coincidir com o motivo - como o mapa que Borges fez coincidir com a realidade do território que registava. Mas, no processo de Martinho Costa não se trata de desenvolver um projecto totalitário de apreensão (mais no sentido da captura que do conhecimento) da realidade; trata-se antes de um projecto que, no seu desejo de ”pintar tudo”, se apresenta como modalidade de resgate da realidade.


Tempo houve em que o artista, nas suas Pinturas ao Ar Livre, ironizava sobre a tradição naturalista e “ar librista” pintando directamente sobre paredes, muros ou outros materiais de construção (como pedras de calçada) que integravam os próprios motivos das pinturas. Martinho Costa afastou-se depois da materialidade exacerbada que essa prática conferia às imagens, muitas delas pintadas em lugares de difícil acesso e deixadas ao abandono e degradação natural, nos suportes imóveis onde tinham sido criadas. Isso não afastou Martinho Costa da tarefa principal que a sua pintura propõe: a valorização do que, em nosso redor, tende para a invisibilidade, para o anonimato, para a perda. Pelo contrário, dando-lhe mais mobilidade permitiu-lhe desenvolver mais vastos mapeamentos do mundo exterior numa profusão de imagens que depois apresenta em diversas soluções de dimensão, montagem e formato. 

Em séries mais recentes, quando pinta sobre uma superfície dobrada em ângulo recto, cria uma esquina (uma dobragem) que descoincide com a realidade que representa, mas que confere realidade tridimensional ao ilusionismo das imagens planas. Também quando compõe a esquina interior de uma sala de exposições, criando uma grelha de dezenas de pequenas imagens, como se fossem tumbnails, Martinho Costa mima a estratégia de apresentação de um portfolio de artista (do seu portfolio) numa página de motor de busca aberta num écran de computador. Martinho Costa estabelece assim um atlas de imagens banais ou que poderemos mesmo classificar de sub-normais devido à irrelevância poética, literária, visual que as podem justificar. Ao executar verdadeiros raids, apresentando-se com uma visão de 360º, limpando o campo minado do que é belo e relevante no mundo, o artista concentra-se apenas no resto (ou nos restos) da realidade. 

 

Na verdade, estas pinturas são fotografias realistas pensadas desde início como pinturas - o registo inicial perde-se ou é rejeitado no processo de criação pictural. Pensadas como pinturas / para serem pinturas elas seriam insignificantes enquanto fotografias. E é, em simultâneo, a partir e contra essas fotografias (ou a sua prática), a partir de um referente (a fotografia mecânica ou digital) que se desacredita que Martinho Costa recupera quer a dignidade da pintura quer a dignidade dos motivos indignos que escolhe. 


Algumas pinturas expõem de modo especialmente claro o que dizemos: Árvore, Portão, Portão Verde, Pano, por exemplo, representam a sua tendência para o close-up que revela o pormenor sem dar a compreender o todo. Os títulos, de sabor também naturalista, parecem acentuar o que as imagens mostram. De facto, são títulos falsamente descritivos, incompletos ou desviados; nunca dizem o mais importante, nunca focam o que é a centralidade da imagem: a Árvore é, afinal, um ser frágil, juvenil e descentrado; o Portão, que ocupa a totalidade da superfície como um mero papel de parede, e dá nome à pintura, é visualmente menos importante que o estreito ferro dobrado que corta a imagem com uma linha oblíqua e a sua sombra, que é onde o nosso olhar imediatamente se concentra; o Portão Verde, mantém as mesmas características de fuga, surgindo ainda como fragmento dentro do fragmento - elemento também deslocado do cento de uma parede inacabada, sai do nosso campo de visão deslizando pelo lado direito imagem; as mesmas constatações valem para o modo como Pano nos é apresentado.


Há ainda pinturas que, mantendo características das anteriores, podem funcionar como testemunho maior ou manifesto de todo o processo e projecto de trabalho de Martinho Costa: Sol Negro, Falsas Montanhas, , por exemplo. Desejo que, ao encadeá-las assim, a sua posição, não signifique qualquer hierarquização - todas três me parecem de igual importância: a tampa da objectiva que (vista? encontrada? atirada? inadvertidamente caída?), no chão, cifra (mas ao mesmo tempo desvenda) a tarefa de registo fotográfico a que se dedica o pintor; a falsa paisagem de montanhas (evidentemente “sem horizonte”) composta por um monte de papéis amarrotados, amontoados no chão e onde os jogos de ilusão e escala são decisivos; finalmente, o lixo que uma pá doméstica de cabo recolhe como se recolhesse algo de precioso, merecedor de ser representado. Note-se que todas estas coisas (e também o Pano, já referido) são “coisas do chão”: vistas, encontradas, apanhadas (?), representadas em terra solta, semeada de ervas daninhas, em cimentos sujos e mal tratados, perto de muros mal conservados, portões ferrugentos... É a pintura que eleva o estatuto destes motivos.


No conjunto de imagens que nos interessou destacar apenas a pintura Baliza se apresenta integra e central ao nosso olhar. Talvez possamos pensar que ela é metáfora da rede que, receptáculo e armadilha, passiva e activa, acolhe / captura o nosso olhar para o seu interior, para a interminável teoria de imagens que Martinho Costa vai desdobrando à nossa frente em scroll down. De qualquer modo, há outra uma dupla leitura: através das sombras da baliza que avançam em nossa direcção toda a estrutura se reverte e se expande-se até ao campo físico que ocupamos (ou seja, para fora da pintura). Não sabemos se o faz como ameaça se como convite.


João Pinharanda

Paris, 8 de Março de 2020

A fascination for the visible by Vanessa H. Sánchez in conversation with Martinho Costa

The best way to explain what Martinho Costa presents us in his new exhibition Testigo (Witness) is with his own words: "It must be said that the exhibition is not about Spain or the theme of landscape nor travel" ... But this exhibition begins with a trip indeed; a trip that he does not want to refer to, for all that the philosophy of the trip entails, or does not want to talk about how the artist embodies the figure of the traveller, a seeker with no return, or maybe he does not want to see himself as a tourist, as it is described by Paul Bowels in "The protective sky**", where the tourist will travel the world as a collector of sensations, being always aware of his return, because this is not what Martinho Costa wants to talk about. Because this exhibition is not about the trip.

Testigo emphasizes the particularity of painting as the discipline of the gaze par excellence. From a slow, in-depth look, which does not pursue moral discourses or any other kind of narrative, we will not find anything but the pure act of presenting things made painting; a kind of look that makes you remain analytical. As the fifteenth century treatise "Della Pittura" by Leon Battista Alberti introduces us to a new era of painting, breaking with the old medieval system and dismantling the concept of genius in favour of the virtues of diligence and dedication involved in visual appearances, Martinho Costa brings these concepts to the contemporary, to understand what we see in the pause of the analysis, and to see and understand things because we are observing them. And this is his trip, seeing and understanding in new places, with new eyes.

In his case, it is the camera he uses as a sketchbook, as an observation tool, as a traveling painter of the eighteenth century, who would wrote down all his visual experiences of the new world in notebooks - and then gave free rein to the colonizing ideas of the exotic -. Martinho Costa collects his images as sketches that become sensitive looks of the mundane, but how to span the entire world and catch it? It seems that this is the artist's main goal:  to understand - as a philosopher would - what happens in the world and how to express his hypotheses about it in painting. Each new work of the artist consists of a whole at the same time. But, when the option is the whole, how do we get to decipher that whole? Martinho Costa starts from the idea of ​​archiving, as a sensitive archive of things, of the tangible, and it is here that he faces what he means by painting and what he does not. There is a first empirical and intuitive work in selecting the images he wants to paint but this does not always follow a pattern.

A new approach to his pictorial practice can be seen in Testigo: he has stripped himself of the technology that always accompanied him to face the canvas directly. A confrontation that makes him work faster and more intensely, where he sees* his weaknesses as an exposed painter and that makes him reflect clearly in these terms: “I recently listened to a podcast about Francis Bacon’s current exhibition in the Pompidou, which talked about the idea of ​​strength in his painting, something that made me think. The painting as witness of the painter's force on the record of matter*. Painting made meat. Now that I practice this “no-grid”* way of painting the muscle is more evident. The gesture is longer, it has more doubts, sometimes it turns out, sometimes it does not. It is a real battle. You lose or you win. Before, it was all a bit more controlled, more towards the result, "without thinking" as Gerard Richter says. Now I rather pursue what I decide is important in an image (an essence).” It is for all this, perhaps, that in this exhibition we see remnants, paintings that would lead us to abstraction or ambiguity, a definitive new manner for Martinho Costa, a fascination for the visible.


Una fascinación por lo visible

por Vanessa H. Sánchez en conversación con Martinho Costa 

Gradient Tool de Martinho Costa


Maria de Fátima Lambert

“Sans promenade, je serais mort et j’aurais été contraint depuis longtemps d’abandonner mon métier, que j’aime passionnément. Sans promenade et collecte de faits, je serais incapable d’écrire le moindre compte rendu, ni davantage un article, sans parler écrire une nouvelle. »[1]
Painel-ideia 1
São inúmeros os escritores e filósofos, tanto quanto, artistas e poetas que aludiram aos benefícios da marcha, do ato de caminhar, tomando-os como substância, mas também enquanto metodologia para dinamizar seu pensamento autoral.
Caminhar nutre as reflexões que são plasmadas em obra. As caminhadas impulsionam à criação, promovem a gestação de ideias, sob diferentes perspetivas.
              
Intermédio-imagem 1
Alimentam-se com as suas imagens do mundo vivido de modo lento. Tornando, assim, o caminhante-em-modo-recetáculo, propiciado esse estado pelo ritmo antropológico/psico e sociofisiológico que se autoriza: a demora na passagem das horas – lembrando Fernando Pessoa, quanto Walter Benjamin.
Absorvem conhecimentos cinestésicos do real, mergulhado o caminhante, aquele que marcha ou divaga, no real envolvente, esse Umwelt que adensa a tomada de consciência de todas as aceções do que está disponível a ser experienciado em redor.
A velocidade é implementada, pela sua lentidão, instaurando ritmos que o caminhante controla, decide, tendo deliberado e supondo as condições necessárias ao seu desenvolvimento. Deslocando em tempo de seu bel-prazer – deixando arrastar enquanto autorretrato na paisagem.
Flexibiliza-se a capacidade de encontrar os outros, comungando de idênticos pressupostos e premissas, pois compartilhando desígnios e auspícios superiores.
Relembro Nelson-Brissac quando assinala:

“Silhuetas recortadas contra a paisagem. Imagens arquitecturais se destacando no horizonte. Pessoas e lugares que pretende encontrar depois da próxima curva. A viagem é produção de simulacros, de um mundo puramente espectral erguido à beira da estrada.”[2]

Painel-ideia 2
São fortes as imagens pintadas que evocam o confronto de um artista, poeta ou filósofo, como que emergindo, sobrelevando-se, levitando na natureza melhorada ou registada, convertida, pois em cenário ou paisagem explícitas. Relembre-se Rousseau, Thoureau, Baudelaire, Benjamin ou Herman Hesse…entre tantos outros que contribuíram para converter as caminhadas, deambulações ou flâneries em Walkscapes, na designação de Francesco Carreri.
O caminhante, assim como viajante, é eu, tanto quanto é outro e/ou outros. Caminhada, trajeto e viagem são deliberações sérias, orientam-se pela consecução de condições privilegiadoras para edificar obras, fixando bases sustentáveis, pela identidade que nunca se fecha, antes de processa em etapas agregadoras e únicas.

“O mundo é, por conseguinte, uma imensa paisagem onde o empírico e o mental se entrelaçam inevitavelmente. O ser humano não é um observador separado que configura essa paisagem, mas sim incide nela, ao pretender apreciá-la, medir e conhecer.”[3]

Intermédio-imagem 2
Estas considerações anteriores, tomo-as por impulsos, em termos iconofrásticos/ecfrásticos. Vejo-as consubstanciadas em dois retratos sublimes da iconografia europeia, que são indiscutivelmente emblemáticos: a pintura de autorretrato, intitulada “Bonjour Mr. Courbet” de Gustave Courbet (1854) e a (re)presentificação de Goethe na paisagem bucólica romana, tomada na pintura de Johann Heinrich Wilhelm Tischbein (1787).
No primeiro caso, o próprio pintor se perceciona e representa – idealizado mas realista. Integra a paisagem na conversa, decorrente do encontro que é cativado, como já de uma fotografia espontânea, um registo, se tratasse; no segundo caso, o poeta, filósofo e investigador é idealizado pelo pintor clássico, situando-o numa espécie de lugar-entre. Ou seja, estendido numa chaise-longue em plena romana campagna, na distância estendida sob a linha de fuga certeira, vêem-se os vestígios das civilizações, assim como os elementos de lapidária, próximos aos seus pés negligentes.

Painel-ideia 2
No caso de Martinho Costa, combinam-se estas duas aceções, unificadas na ideia do caminhante, acima evocada, se consideradas portanto em planos concomitantes, e que convergem na sua produção artística desde há mais de uma década. Como Mr. Courbet, o pintor português caminha adentro a paisagem entre o campo, os subúrbios e a cidade, recebendo as imagens em redor, mas deixando as suas imagens pintadas no próprio local, num ato de dádiva e partilha anónima. Quem passar, reconhecerá ou não, um excerto de paisagem que, certamente, possui alguma relacionalidade com o locus, ainda que possa não estar evidente na aparência da pequena, breve (ou não) composição.
Enquanto paráfrase da figura de Goethe, idealizando a sua presença na paisagem urbana-natural, Martinho Costa possui a lucidez da diferença e das conquistas socioculturais, assim como estéticas do real visto que evoca fora de espaço-tempo convencional, mas sem que essas coordenadas sejam totalmente alheias ao empastamento dos 3 tempos do tempo – passado e futuro no presente (que nunca é duradoiro). Diga-se que na sua pintura a efemeridade não se coloca na questão do tempo, mas nos constrangimentos do espaço-lugar, entendidas as suas imponderabilidades. Alguém pode pintar, um dia mais cedo ou mais tarde, por cima do excerto pintado por Martinho Costa, tendo por suporte uma pedra ou um pedaço de muro…e a obra desaparecerá…ou persistirá em condição de palimpsesto… Trata-se da sua série-projeto-trajeto “Pinturas ao ar livre”, na verdadeira aceção do termo. Vejam-se em http://pinturasarlivre.blogspot.pt/ . Para cumprir este propósito, o artista caminha, desloca-se para intuir o local certo que carece a sua intervenção de pintura tematizada.
Em algumas pinturas da série “Terra de Sombra Queimada”, apresentadas em 2017, encontram-se abordagens ao espaço enquanto cenário de vastidão, que gerem uma aceção panorâmica de localizações interiores ou exteriores, estabilizadas numa composição que é regularizada pela estruturação reticular distendida, sob auspícios de abordagens feitas no computador. Todavia, o procedimento dialoga com as estratégias a que, com maior frequência, no Renascimento e Barroco, os pintores recorriam para transpor o vista, mediante uma simetria e regularidade idealizada, mas provindo de uma observação de teor naturalista. Estes dispositivos, associavam-se, por exemplo, e no caso de alguns autores, a partir de uso de desenhos em gravuras que eram tratados sob formato de pintura, à semelhança do que mais tarde serviu, para alguns, a fotografia como registo para transposição pictórica.

Intermédio-imagem 3
Marcher, dans le monde contemporain, pourrait évoquer une forme de nostalgie ou de résistance. Les marcheurs sont des individus singuliers qui acceptent des heures ou des jours de sortir de leur voiture pour s’aventurer corporellement dans la nudité du monde.»[4]

Painel-ideia 4
Evocam-se estas considerações para contextualizar o processo iniciado com as pinturas murais produzidas para a Sala da Quase Galeria, assim como para os dois grandes painéis colocados nas laterais do lanço da escadaria central do Museu Nacional Soares dos Reis, quando subindo do 1º para o 2º piso. Durante vários meses, incluindo vindas específicas ao Porto, Martinho Costa, percorreu o Museu, assim como se parou na Sala da Quase Galeria, calculando internamente as características de ambos lugares e mentalmente trasladando as suas ideias-imagens-ideadas. Assim, quer num caso, quer no outro, o artista tomou como conteúdos iconográficos, painéis de Azulejos vistos previamente.
No Museu, e para conceber os dois painéis verticais laterais, analisou pormenorizadamente os painéis de azulejos que forram os muros que conduzem à escadaria, no seu pátio interior. Deles, destacou algumas figuras e situações específicas que interseccionou, combinando-as com elementos gerados em computador. A partir de uma organização cuidadosamente delineada, dividiu as figuras e formas, desfragmentando-as por assim o dizer. Tais fragmentos foram tratados de forma deliberada, jogando entre a opacidade da cor e os dinamismos figurativos das linhas e das sombras estipuladas.

Intermédio-imagem 4
Para a Sala da Quase Galeria tomou como fonte, grandes áreas de azulejaria de um palacete no Chiado, em Lisboa, procedendo de forma idêntica. Um dos denominadores comuns entre ambas obras específicas, reside na luz. Melhor, na constatação da incidência da luz, quer na Sala da Quase, quer nas Escadarias do Museu. Sob condições de luminosidade aberta, e consoante a passagem das horas viu anularem-se significativamente o que estava para ser visto dentro desses espaços e, por consequência, imaginou as figuras a desfazerem-se das suas tonalidades altas de cor e contornos, volumes e significados visuais, para se ocultarem por essa ação do tempo. Donde as velaturas sobrepostas e graduadas como no software Gradient Tool. A partir daí, há que pensar que a caminhada, a deslocação no lugar, não é mais a do artistas, mas a do visitante que haverá de agarrar as nuances, as ínfimas diferenciações estabelecidas, e sabendo posicionar-se, definindo o seu lugar de espectador, sabendo usufruir da sua condição de observador.

Painel-ideia 5
As árvores inclinadas ou entrelaçando-se dividem as cenas nos grandes painéis de azulejos, organizando-lhes a sequência, pontuando a narrativa intrínseca e isolando as unidades evidenciadoras das narrativas ou relatos. As figuras recortadas em perfil ou a ¾ insinuam-se, evocativas de uma tradição que radica nos painéis azulejares dos sécs. XVII e XVIII em Portugal. Tais pinturas em azulejo decorriam, com alguma frequência, de uma composição que trazia elementos copiados de gravuras convenientes, associadas a detalhes estilísticos, consoante o gosto estético dominante, e próprio da oficina que os produzia. Existe pois, uma espécie de vocabulário, de glossário visual que permite reencontrar figuras-tipo e inventariar situações e episódios, proporcionando uma cumplicidade entre um saber mais lato – em termos de público, não apenas erudito, e outros que exacerbam mais o culto das artes e dos saberes. Mas a sedução azulada destas unidades cerâmicas encontrou eco nos papéis pintados com a subversão da escala – azulejos desmesurados – e nos quadrados menores de Mdf pintado, colocados na diagonal, dos dois “vitrais de azulejo” nos patamares do Museu Nacional Soares dos Reis.


Intermédio-imagem 5
Sem que eu possa calar-me, olhar os painéis pintados de Martinho Costa, obrigam-me a regressar à Serra d’Ossa, a memórias desses mergulhos nos tempos que, anualmente, eu repito.
Percorrer os corredores escurecidos do Convento de São Paulo, deslizar o olhar, ao longo das paredes [espessas] forradas, sendo os azulejos uma espécie de pele que, de tão esticada, se indissocia do “dentro”, sedimento das entranhas de eremitas e senhores.
As portas interrompem os panos/ as cenas, “semantizando” vivências iconografadas e assim, nos vão incorporando, ao relatarem episódios representados – quer do Velho e do Novo Testamento; assim como cenas galantes, que os ingleses designariam por conversation piece e os holandeses tanto gostavam de celebrar nas suas cenas de intimidade da família nos ritmos costumeiros.

Painel-ideia 6
40 unidades escrevem-se em 5 linhas paralelas, compostas na horizontal e cruzadas na vertical por 8 conjunto de elementos consecutivos. O tempo desliza na pele do papel engrossado pelas camadas de tinta e as sucessivas velaturas aguadas que, num direcionamento em quase diagonal esbranquiçam o azulado, sem todavia o desmanchar. Apenas o apaziguam, consignados pela luz que jorra pela porta envidraçada adentro. Não vem junto nada de paisagem. A paisagem deteve-se, não querendo imiscuir-se com a alegoria de dentro.
               Intermédio-imagem 6
Porta envidraçada verdadeira, porta interior d madeira e de verdade [“…onde se vê absolutamente nada”, parafraseando Manoel de Barros, poeta de Góias, Brasil], paredes verdadeiras: eis o que se desenrola na arquitetura da Sala da Quase Galeria.

Painel-ideia 7    
Os perfis garbosos insinuam-se, sobrepondo-se aos fundo invisibilizados da paisagem que funciona como base de sustentação. As figuras param-se na postura justa, comprovando a prevalência da concinnitas. Os adereços afeiçoam a veracidade pintada, pormenorizados por traços regimentados por pulsões controladas. O todo compõe-se da visão, da acuidade das imagens-ideias que conseguem autonomizar-se do seu autor. O detalhe, sabemos com Daniel Arasse quanto é insubstituível na nossa consciência de ver, de detetar, poderá cumprir a função do punctum dito por Roland Barthes – penso eu.
               Intermédio-imagem 7
A figura de convite congelou-se no átrio anterior à Sala da Galeria, esboçando um tímido acolhimento a todos que aí se dirijam. Não é uma figura impositiva (apesar de seu traje esmerado, erudito mesmo), aliás encontra-se algo embaraçada de tanto azul e branco a destaca-la da parede e sob luz de um foco artificial à noite. Sente-se iluminada de dentro para fora. Ao longo do dia, vai readquirindo aquela postura – re-ganha confiança em si mesma – torna-se invejável, à semelhança daqueles seus antepassados ocuparam em palacetes e casas solarengas para deleite dos ilustres e de todos.

Painel-ideia 8
Nalguns casos clássicos da história da pintura, as figuras desvaneciam-se, perdiam-se, porque escondidas ou dissimuladas na paisagem – quer interior, quer exterior. Na azulejaria, os painéis expunham figuras entre o galante e o mitológico, apropriando-se da subversão dos tempos históricos, embora a eles aludindo em ritmos estudados. Nos 2 painéis de azulejos simulados, pintados em formatos desconvencionados, a descoberta impõe-se procurando o reconhecimento das ideias – e não tanto das figurações – a que Martinho Costa quis aludir, nomeadamente na proximidade dos grandes vasos que ladeiam a grande vidraça por onde a luz há-de entrar sempre.
               Intermédio-imagem 8
“É de ressaltar que as imagens privilegiam a paisagem urbana e a natural, sendo raros os casos onde o homem se faz presente; quando isto ocorre os indivíduos registrados encontram-se distantes da câmara, diluídos ao fundo da representação.”[5]
CODA
Haverá que deambular, depois, pela cidade do Porto, de modo a encontrar as pinturas escondidas que Martinho Costa nos possa legar, como testemunho simbólico desta sua incursão-viagem-caminhada. Também…porque cumpre o que Xavier de Meistre aconselhou:
“Feliz também o pintor cujo amor pela paisagem o leva a passeios solitários, que sabe exprimir na tela o sentimento de tristeza que lhe inspira um bosque sombrio ou um campo deserto! As suas produções imitam e reproduzem a natureza; ele cria novos mares e negras cavernas ignotas ao sol: a seu mando, verdes arvoredos saltam do nada, o azul do céu reflecte-se nos seus quadros; conhece a arte de turvar os ares e de fazer rugir as tempestades.”[6]




[1] Robert Walser, « Promenade », citado por David le Breton, Marcher, éloge des chemins et de la lenteur, Paris, Métailié, 2012, p.28
[2] Nelson Brissac Peixoto – “Miragens”, Cenários em ruínas – a realidade imaginária contemporânea, Lisboa, Gradiva, 2010, p.137
[3] Gloria Moure, On the Road, Santiago de Compostela, Xunta de Galicia, 2014.
[4] David le Breton – Éloge de la marche, Paris, Métailié, 2000, p.14
[5] Boris Kossoi, Realidades e ficções na trama fotográfica, SP, Ateliê Editorial, 2002, p.101
[6] Xavier de Meistre, Viagem à roda do meu quarto, Lisboa, & etc, 2002, p.32-33 (Cap. VII)


Martinho Costa: Coleccionar el mundo y traerlo a casa - Ángel Calvo Ulloa

Martinho Costa: Coleccionar el mundo y traerlo a casa.

Martinho Costa trabaja de manera obsesiva alrededor de un archivo inabarcable, echando mano siempre de la tradición pictórica y generando comparativas entre el pasado y el presente de una disciplina que inevitablemente se ha visto sorprendida ya no por la histórica irrupción del retrato fotográfico, sino por la banalización del disparo. Folding screen supone un análisis en torno al consumo de imágenes que realizamos en la era en que internet ya no destaca únicamente por su utilidad, sino por haberse convertido en un medio ineludible que entre otras necesidades genera la de inmortalizar instantes que segundos después pierden su importancia. Fotografiamos de manera compulsiva y por esa misma razón hemos provocado que con el paso del tiempo el recuerdo apenas tenga opciones de ser modificado mentalmente. Si recordamos quizás alguno de esos instantes destacados en la vida de cada uno, el uso que se daba a la fotografía era hace poco más de quince años totalmente distinto. El disparo se producía cuando la escena se encontraba perfectamente compuesta y esa imagen pasaba a convertirse en el resumen de aquel recuerdo que el discurso articulaba para finalmente convertirse en tradición oral, en punto de partida de una anécdota levemente ilustrada.

Cada uno de los montajes de Martinho Costa suele destacar por la materialización de ese colapso al que un simple scroll en una red social nos expone varias veces al día. Si la pintura se caracteriza por conceder a la imagen una categoría y durabilidad distintas, elegir de entre ese ilimitado banco fotográfico las que merecen perdurar se convierte en un juego casi caprichoso. No es de extrañar entonces que cuando se ofrece la posibilidad de mostrar un trabajo de un modo casi retrospectivo, el resultado sea nuevamente un empacho en el cual la unicidad de la imagen pintada termina por convertirse en un exceso en que la duda nos asalta acerca de la verdadera importancia de cada instante aquí contenido.

Buena muestra de esto es la serie 48 Retratos, secuencia homónima de la presentada por Gerhard Richter en 1972 en el pabellón alemán en Venecia. En la de Richter el motivo elegido era una sucesión subjetiva de los personajes más importantes del siglo XIX y la selección destacaba por el dominio del hombre blanco, europeo o norteamericano. En 1998 Richter revisó la obra y generó a partir de las fotografías de cada uno de esos retratos una nueva versión de este trabajo, que recuperaba la forma fotográfica inicial y ahondaba en su interés por trabajar mediante el desplazamiento de géneros entre la pintura y la fotografía. En los cuarenta y ocho retratos de Martinho Costa, desconocemos el nombre propio de cada retratado; las imágenes ya no son extraídas de enciclopedias sino de internet y cada uno de los personajes anónimos aparece de espaldas o camuflado tras su indumentaria de trabajo. Es interesante recuperar entonces esa declaración del propio Richter, que afirmó que algunas fotos de aficionados son mejores que el mejor Cézanne. El personaje histórico es sustituido por el ciudadano anónimo que pasa así a ocupar el espacio del retrato pictórico, otrora protagonizado por el prohombre.  

Resulta irónico descubrir en la pared contigua una gran pintura de 2011 en la que se presenta el bosque de Fontainebleu, cercano al pueblo de Barbizon, donde tuvieron lugar las primeras aproximaciones a lo que sería la pintura al aire libre. Costa extrae de la aplicación Google Street View una vista al alcance de cualquier internauta, que al mismo tiempo supone una adaptación al momento presente de Le Pavé de Chailly, la pintura realizada en 1965 por Claude Monet en el mismo lugar. Lo interesante de estos ejercicios de Martinho Costa pasa por la forma que tras el análisis adquieren las imágenes. Costa bebe de una tradición que si en el siglo XIX ya se había visto condicionada por los avances en el campo de la fotografía, en plena era de su desmaterialización y de su banalización, evidentemente ha vuelto a poner en entredicho el papel de la pintura hoy.

La primera vez que me enfrenté a la obra de Martinho Costa lo hice ante una serie de pinturas realizadas sobre fragmentos de mármol de corte irregular, reciclados de entre los escombros de un aserradero de piedra. A esa necesidad de trabajar ofuscadamente sobre cualquier soporte se unía el dotar su pintura de un peso físico mayor del habitual. Las imágenes podían provenir de un aficionado anónimo y sin embargo la gravedad de su representación se convertía en una característica unida a sus bordes mellados, como si se tratase de los fragmentos de un friso recuperado de entre los cascotes de alguna ruina.

Ahora conviven algunas de esas pinturas con los 48 Retratos, con su vista de Fontainebleu, con la proyección de las animaciones realizadas entre 2008 y 2014 y con otras series como O Diário de Robert Stern o Todos os dias saio por um caminho diferente. Para la primera Martinho Costa realizó un seguimiento de la vida de Robert Stern, un ciudadano de Pensilvania que obsesivamente publica sus fotografías en la web Flickr. Costa decidió pintar durante 2011 una extensa selección de imágenes extraídas del día a día de este individuo que todavía hoy ignora la existencia de esta serie de pinturas. Costa echa mano de esos pequeños fragmentos de vida privada que ha sido hecha pública por su protagonista y actúa como un voyeur ante la pantalla desdoblada.

En Todos os dias saio por um caminho diferente la intimidad que se hace pública es la de su propio estudio. Costa traslada al DA2 una selección de las treinta y seis pinturas que componen esta serie cuyo título se extrae de las Quejas de Menón por Diótima de Hölderin. El resultado es una sucesión de detalles aleatorios tomados del espacio en el que surge ese modo persistente de trabajar en torno a la imagen fotográfica. Dirá John Berger que la pintura colecciona el mundo y lo trae a casa, una reflexión que se convierte en catálogo en manos de Martinho Costa.

Días antes de que la exposición abra sus puertas, ajeno al resultado final de este montaje, puedo sin embargo intuir la aparición de alguna de sus pinturas al aire libre en algún rincón de la ciudad de Salamanca. Tras estas intervenciones subyace un deseo de interferir en la vida diaria de los espacios urbanos, estableciendo un diálogo con el viandante y desmaterializando el carácter de la obra, otorgándole un carácter público, expuesta a las inclemencias y al maltrato, propiedad de todos y de nadie. Una acción desdoblada que funciona a modo de biombo, pero también a modo de archivo ilimitado de imágenes que pasan desapercibidas hasta que, en forma de pintura, nos obligan a detenernos. Quizás ese sea el punto cero de la pintura de un fotógrafo que trabaja como un pintor.


Ángel Calvo Ulloa

Artigo na publicação online PAC



Martinho Costa: “Les Statues Meurent Aussi”

17 Jul. 2014 Duas. Sara Gimeno Pose

Entrevista para a folha de Sala para a exposição - 5 Artistas em Sintra - Nextroom, Lisboa


5 Artistas em Sintra 
MARTINHO COSTA, LUÍS NOBRE


(c)DMF


São os primeiros a inaugurar no Next Room. Configuração #1 - 5 artistas em Sintra foi criada especificamente para este espaço? Quais foram os motivos desta escolha?

Martinho Costa: Sim, a exposição foi feita especificamente para o espaço. O que poderemos ver nesta primeira intervenção no Next Room, é uma exposição que junta a pintura, a fotografia documental e o desenho para configurar uma instalação, no 3º piso do edifício do Nextart. Estes trabalhos foram desenvolvidos por mim e pelo Luís Nobre, em colaboração.

Já há algum tempo tinha vontade de dialogar com a pintura dos Cinco Artistas em Sintra,
obra da autoria de Cristino da Silva, que estudei nas penosas aulas de História da Arte Portuguesa, na faculdade. Esta pintura representa um conjunto de artistas que é praticamente toda a geração dos artistas plásticos do movimento romântico português. A obra foi composta de uma forma muito cuidada, de tal forma que poderemos retirar algumas leituras sobre as intenções do seu autor (aposto que tinha as meninas do Velasquez na cabeça).
Vejo nesta espécie de mise-en-scéne, um “statement” sobre a condição do artista que o romantismo veio anunciar: alguém que procura na natureza um escape, uma evasão da realidade e, nesse espaço de recolhimento, a projecção dos estados de alma. É curioso notar que, entre os artistas, encontramos algumas pessoas do povo, mas apenas os artistas parecem dar-se conta de que têm uma “câmara” apontada, como um observador que os contempla. Apercebo-me que o autor colocou na tela alguns elementos da gramática do romantismo: a paisagem com um castelo ao fundo, um penedo gigante, irreal, que quase parece uma nuvem, uma atmosfera difusa de fim de dia.
Antes de pensarmos na dinamização deste novo espaço do Nextart, a minha ideia era ainda muito indefinida: faria um diálogo com a pintura, sob a forma de uma intervenção ao ar livre (do meu projecto das Pinturas ao Ar Livre),ou sob a forma de pintura de atelier. Acabei por optar pelas duas possibilidades.

Pelo facto do Next Room ser um espaço ligado a uma escola de artes, pensei que esta pintura poderia ser um óptimo ponto de partida. Vejo nela uma certa cristalização da imagem do artista. Na pintura aparece um dos artistas a desenhar perante o olhar pasmado de alguns dos camponeses. O pintor surge-nos aqui como alguém dotado de um talento extraordinário, um ser fora da sociedade, muitas vezes incompreendido. Todo um conjunto de clichés que os românticos evidenciaram, apesar de já estarem há muito instituídos (desde o momento em que os artistas começam a assinar as suas obras). Algo que o Nextart, enquanto escola de arte, consegue desmistificar.

O Luís também tem interesse por uma certa revisitação do passado, além de uma enorme sensibilidade para intervenções no espaço. Decidimos, por isso, juntar as nossas diferentes abordagens num processo de contaminação, estabelecido desde o início, o qual seria desenvolvido numa expedição a Sintra. Essa viagem IC19 acima foi devidamente documentada através de fotografias. A exposição é composta pela conjugação dos trabalhos produzidos por cada um de nós e pela documentação da intervenção feita em Mira Sintra, com o Castelo da Pena como pano de fundo.


Com esta intervenção estão a tematizar questões ligadas ao Movimento Romântico. Quais são essas questões e por que motivo vos interessam?

Luís Nobre: Na realidade este projecto é mais do que a intervenção que vemos neste espaço. Interessou-nos todo o processo, desde o trabalho em atelier até à procura de um local/situação que se aproximasse ao enquadramento da pintura 5 Artistas em Sintra de Cristino da Silva.

Reequacionámos a leitura da pintura citada, baralhando os valores simbólicos da Paisagem desenvolvidos pelo Romantismo (noção de escala, perspectiva, a relação do homem com os elementos da natureza, …)

M.C. : Gosto de pensar nesta procura de um local de que o Luís fala, como uma espécie de deriva, uma viagem sem destino definido, nem finalidade concreta. Penso que esta viagem, inspirada pela pintura do Cristino da Silva, foi quase ensaística, no sentido de tentar desmontar a aura do autor que, como disse antes, está ainda presente na forma como este é olhado pelo público em geral. No meu trabalho Pintura ao Ar Livre feita em Mira Sintra,Câmara Clara, o artista está em pleno acto de representação através do desenho. É auxiliado nessa tarefa, por vezes difícil, por esse mecanismo que eu ensino a usar descomplexadamente aos meus alunos no Nextart.

L. N. :Considero o trabalho de atelier extensível a outros contextos, os elementos que influenciam os mecanismos durante esse processo alargam as possibilidades de execução/interpretação tendo em atenção uma série de factores em que o acaso e a rápida solução de problemas assumem importância extraordinária.


As temáticas abordadas em Configuração #1 – Cinco Artistas em Sintra fazem parte dos temas habituais do vosso trabalho? Como podemos contextualizar este projecto com o vosso percurso artístico? E porque decidiram desenvolver o trabalho em colaboração?

L.N. : Desde que o Martinho e eu nos conhecemos numa exposição em Madrid houve uma empatia que acabou por resultar neste projecto. Embora trabalhando com médiuns diferentes, em Configuração #1 o desenho e a pintura constroem uma unidade que põe em causa os conceitos tradicionais de ambos os processos artísticos.

M.C. : No meu caso, faço muitas vezes diálogos com o passado. Quer seja com artistas ou obras específicas: A Jangada da Medusa de Gericault, no projecto das Pinturas ao Ar Livre, ou com Fontainebleau e a ideia de paisagem, revisitando um local específico no Google Earth de uma pintura de Monet. Outras vezes procuro temas da história da arte, como no caso da minha série Ruína, onde procuro imagens na internet de edifícios em escombros. 

L.N. : Interessa-me re-contextualizar a obra de arte, recuperando directrizes que aproximam as artes visuais à arqueologia, a interpretação de um artefacto/peça está, invariavelmente relacionado com os significados que conseguimos encontrar, através da dissecação das camadas que os sustentam.  

M.C. : O Luís Nobre é um artista que tem um trabalho que me parece muitas vezes citar o passado, criando espaços de confluências de fragmentos. O fragmento enquanto dispositivo é algo que me parece ser muito usado nas suas instalações. Se há um conceito de excelência no romantismo, é precisamente o de fragmento! O movimento romântico da transição do sec XVIII para o séc. XIX foi fascinado pelos vestígios e pelas ruínas do passado. Isso materializava-se depois numa revisitação ficcionada (o capricho), encenando, através da imaginação do artista,  elementos do passado clássico.
Ora, o que nós quisemos fazer aqui foi como que se fosse uma revisita ao passado, uma encenação, mas não uma cenografia, sob a forma de uma viagem. A procura de um possível local ou ponto de vista, no qual a pintura de Cristino da Silva em 1855 poderia ter sido feita. Uma espécie de Grand Tour a uma escala suburbana...

Extracto da entrevista realizada por Teresa Rutkowski, coordenadora pedagógica do Nextart, em Maio de 2013.

O Incorporar das Imagens - Horácio Borralho


Sinopse

           

O principal objetivo deste ensaio é fazer uma abordagem à obra de Martinho Costa, um artista plástico em início de carreira acerca do qual ainda não há uma reflexão muito profunda. A partir de certa altura, sensivelmente o fim do mestrado, Martinho Costa decide dar um novo rumo ao seu trabalho. Passa de uma abstração influenciada pela escola de Nova Iorque para uma linguagem figurativa de onde ressalta um olhar para o passado em termos de tradição pictórica. A influência Impressionista é visível nos seus óleos, assim como outras influências incontornáveis a nível da figuração contemporânea: Gerhard Richter e Luc Tuymans. O processo de trabalho de Martinho Costa será também um assunto abordado tentando perscrutar o seu universo estético. Para este ensaio foi realizada uma entrevista ao artista e foram também usados alguns escritos disponibilizados pelo próprio.
            Como tantos outros, Martinho Costa é um artista de uma geração emergente que regressou à figuração, embora mediada pelo uso da fotografia. Martinho não pretende copiar a fotografia transformando a pintura num mero sucedâneo fotográfico, mas antes, apresenta uma marca pictórica pessoal de uma expressividade invulgar, que faz com que a sua pintura nunca compita com o modelo fotográfico usado.
            Muitas das escolhas feitas em relação aos assuntos tratados neste ensaio, foram-no com o intuito de terem pontos convergentes com a minha pintura.

Palavras-chave: Figuração, Pintura, Imagem, expressividade, Contemporânea.



Resumo Biográfico


Martinho Prazeres Costa nasceu em Fátima em 1977 de onde só saiu em 1996 para entrar na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Em 2003 conclui o Masters in Teoria y Prática de las Artes Plásticas Contemporâneas na Universidad Complutense de Madrid. Vive e trabalha atualmente em Lisboa.

1- Martinho Costa numa das suas intervenções em espaço público

Martinho trabalha principalmente em pintura e em vídeo/animação, tentando compreender como as imagens que nos rodeiam podem ser incorporadas nestes meios de expressão. Propõem-se revisitar os grandes temas clássicos da história da arte usando-os como reflexão para a sua obra atual. Com isto não pretende estagnar no tempo mas sim transpor essas temáticas para a atualidade. Martinho embora utilize o óleo nas suas pinturas, com a carga histórica que esse meio encerra, também utiliza meios informáticos no seu processo de trabalho como pesquisas no Google, redes sociais, utiliza projetores para desenhar e muitas outras marcas do mundo contemporâneo.




Do abstrato ao Figurativo


Martinho Costa é hoje um artista plástico assumidamente figurativo, mas nem sempre assim foi. Durante a sua formação artística e nomeadamente nas suas primeiras exposições como estudante “finalista”, Martinho estava muito próximo da estética da Escola de Nova Iorque[1] a qual tinha como principais expoentes Mark Rothko, Willem de Kooning, Adolph Gottlieb, Barnett Newman, Archile Gorky e Jackson Pollock. Foi também bastante influenciado nesta altura por Sean Scully.

2- Martinho Costa, sem título, 2002, Acrílico sobre MDF.

A partir de determinada altura Martinho Costa sente que o assunto se está a esgotar. A essência escultural da pintura abstrata e a escassa componente de elementos formais colocam esta abordagem estética próxima da rotura.
“…Era um trabalho muito estreito, que eu autoimpus que fosse assim: estreito, tinha poucos elementos formais. Eram campos monocromáticos que tinham muito a ver com escultura. Pensava muito a parte das proporções, tinham uma espessura, havia peças que eram assentes no chão. Eram trabalhos que iam pegar muito na estética minimalista. Estava bastante interessado na Escola de Nova Iorque e acabei por ficar um bocado cansado daquela linguagem. Em termos de processo de trabalho aquilo acabou por se tornar um bocado repetitivo e apeteceu-me começar a pensar em outros termos, a pensar mais na atualidade, nas imagens da atualidade e acabei por aproveitar, quando saí da faculdade. Fui para Madrid, fiz o mestrado e aí fiz tábua rasa do trabalho anterior e comecei tudo de novo. Comecei por fazer as pinturas das cameras de videovigilância… foi assim uma mudança…” (Costa, 2012)
            As primeiras pinturas figurativas datam de 2003 e quase de uma forma inconsciente Martinho Costa abordava uma das grandes temáticas da arte contemporânea: as sociedades de controlo. Uma espécie de panóptico de Foucault. O nome da série de pinturas que reproduz as imagens das cameras de vigilância de tráfego chama-se Camera 24. Neste caso, Martinho Costa estava simplesmente fascinado pelo tempo real e pelo não-acontecimento.

3- A ponte de Londres, 2003 Óleo sobre MDF



A realidade mediada pela fotografia


“Qualquer imagem bidimensional é passível de ser pintada.” (Costa, 2012)
Esta é uma das bases do pensamento estético de Martinho Costa, sendo que a fotografia é uma forma de obter uma imagem bidimensional. Colocando a questão de um ponto de vista prático e transportando-a para o processo de trabalho deste artista, poder-se-á dizer que Martinho Costa apropria-se de imagens, na maioria das vezes, projeta-as num suporte e seguidamente pinta-as a óleo, sem estudos prévios. As duas fontes principais deste artista são: primeiro as imagens encontradas, depois as imagens produzidas, que são incomparavelmente em menor quantidade. As imagens encontradas são todas as imagens que o artista encontra na net, nas revistas, jornais, televisão etc. As imagens produzidas são aquelas que o próprio artista fotografa mas sem a preocupação de as tornar fotografias demasiado elaboradas. Podemos chamar-lhes mais “snapshots”, ou instantâneos.
Todo este processo de trabalho levaria a que fosse criado uma espécie de arquivo de imagens, isto se fizéssemos um paralelismo com a obra de Gerhard Richter[2] e o seu Atlas[3] sendo que na obra de Martinho Costa a atuação é diferente. Martinho assume o arquivo de imagens como um arquivo partilhado, ou pelo menos ao dispor de todos. 
Ele cria pastas temporárias no seu computador que alimentam os seus ciclos de pinturas e no final apaga-as e devolve-as ao fluxo contínuo das imagens. Martinho não alimenta nenhuma ligação afetiva com as imagens modelo, as imagens mediadoras do mundo real. Por outro lado existe outro aspeto bastante importante na obra deste artista: não pretende em momento algum competir com a fotografia, afastando-se assim de qualquer ancoragem ao fotorrealismo e é também muito cuidadoso quando escolhe imagens para pintar: desconfia sempre de imagens “bonitinhas”.
Martinho Costa funciona quase sempre por séries de pinturas. Fascina-o os grandes temas clássicos da arte: A ruina, a pintura histórica, mas sempre com a intenção de as atualizar de as mostrar revistas, mas sempre abertas em termos de uma certa narrativa. Martinho não pretende tomar partido nem ser moralista, assume uma certa neutralidade. Interessa-lhe a linguagem da pintura: Matéria, cor, pincelada, enquadramento… interessa-lhe aquilo que é a pele da pintura.
4- Starfort, 2006, 113x150, óleo sobre MDF (5 partes). Pintura de cariz histórico de Martinho Costa baseada em imagens de gráficos de jogos de computador
5-Capricho 55, inspirado nos caprichos de Goya


 “O diário de Robert Stern”.


“O diário de Robert Stern” é o título de uma série de 95 obras de Martinho Costa que daria título a uma das últimas exposições deste artista na galeria 111.
Este ciclo de pinturas, também existem desenhos e vídeos de animação, datadas de 2011 reveste-se de particular interesse pois levanta questões éticas a vários níveis. Por um lado revela o artista enquanto voyeur, alguém que não pretende tomar partido, que apenas se limita a observar de uma maneira neutral, por outro lado mostra Robert Stern, uma pessoa real que vive na Pensilvânia e que tem como obsessão fotografar os acontecimentos da sua vida, desde os mais banais aos mais especiais. Fotografa Amber, a sua namorada de uma forma sistemática e os seus amigos, os seus animais de estimação e deposita tudo isso no Flickr, chegando a atingir a soma de 15 000 imagens e vídeos pessoais.
Martinho Costa construiu uma narrativa acerca da vida desta personagem real que expõe a sua vida como se de um big brother se tratasse. Provavelmente Robert Stern não sabe que é uma personagem central de um documentário pintado, montado por um artista plástico.



                                              


6- Três pinturas de Amber, a namorada de Robert Stern

            Se analisarmos estas pinturas do ponto de vista formal podemos constatar que a aplicação da tinta, pincelada grossa e imediata sugere-nos que a sua execução é rápida muito à imagem dos impressionistas. A sua pintura adquire a dimensão de instantâneo mas pictórico com uma expressividade que não se encontra no instantâneo fotográfico: é assim o trabalho de Martinho Costa, rápido, olhando as imagens que utiliza para pintar como se fossem descartáveis e ele fosse o “flaneur” que entre elas deambula.



Diálogos com o espaço exterior


            Neste capítulo apresentar-se-á uma nova variante no trabalho de Martinho Costa iniciada em 2011.
 Sentindo uma certa necessidade em fazer circular trabalhos e de os retirar de dentro do seu espaço de trabalho, o artista sente-se tentado a pintar no espaço exterior e inicia aqui uma série de pinturas em espaços públicos tentando com elas dialogar com a envolvente espacial. Este procedimento poderia levar-nos a confundir estas intervenções com graffiti, mas neste caso como assume o próprio artista a realidade é outra.
            “Eu sou um pintor e também faço desenhos animados. Também fiz um documentário, portanto, não sou um graffiter (…) Os graffiters tem muitas vezes uma atitude de impor uma moral às pessoas que me irrita um bocado (…) ok, é a coisa deles, mas eu vejo isto como intervenções ao ar livre. Pinturas que eu deixo a óleo. Muitas, a grande maioria pintadas no local, outras são pintadas no atelier e deixadas no local e ficam lá e o que eu faço com essas pinturas é dialogar com o local… (Costa, 2012)
       7-Pintura a óleo sobre base de poste de alta tensão, feita em Boleiros numa zona de serra.

Martinho Costa assume que nestes casos a pesquisa de imagens é menos aleatória. A busca de imagens é direcionada, pois a intenção é haver um diálogo com o local. Também verificou que ao travar estes diálogos surgiam mais vezes pintadas imagens ligadas à história da arte, normalmente todas de pequenas dimensões e com um caracter intimista. Martinho está interessado também no aspeto efémero das suas obras e por vezes, ou quase sempre, no acesso às suas obras. Nem sempre estão em locais acessíveis. Não se encontram ali ao virar da esquina!

A Pedreira e a Memória


            A pedreira é uma das pinturas de Martinho Costa que pertence a um ciclo de obras intitulado: “A primeira pedra”, um tema proveniente da iconografia bíblica. Na bíblia este tema surge ligado a um apedrejamento, um ato bárbaro situado ao nível do primitivo. A barbárie assim vista é uma espécie de ruína pré civilizacional, que por vezes pode emergir e impor-se à razão. É algo que está também impresso na memória de Martinho Costa, muito para além da metáfora da ruína. Estas imagens fazem parte da infância de Martinho Costa que as visitava vezes sem conta.

8-Pedreira 1, óleo sobre MDF, 120X80 cm 2012

            Na atualidade, o artista utiliza essas ruinas como matéria da memória. Fotografadas no presente, elas são reconstruidas no suporte da pintura talvez como quem recorda o passado ou simplesmente as transforma em objetos estéticos. Existem nestas imagens sintomas de um romantismo que remete para Friedrich e para a fragilidade da vida humana. Remete também para o religioso, qual “Gólgota” de Andrea Mantegna. Muitos preferem apenas chamar-lhe espiritual, talvez Martinho Costa prefira que lhe chame assim.
            Nos dias que correm, o ser pintor implica uma certa espiritualidade, uma espécie de fé ou crença. Implica também ser perseverante e inabalável nas convicções que são muito diferentes de ideologias. Como Martinho Costa, é necessário voltar à pedreira e encontrar os destroços da memória para que com esses destroços se construa uma “outra coisa” como referia Walter Benjamin.


9-Pedreira 2 óleo sobre MDF, 120X80cm 2012




Paralelismos


Chegado a esta altura do ensaio achei pertinente apresentar pontos de contacto entre pensamentos estéticos e respetivas obras. Tal como Martinho Costa também me inscrevo numa linhagem de pensamento herdeira da estética Richteriana, que utiliza a imagem bidimensional como mediadora da realidade. Gerhard Richter afirma a possibilidade da pintura que se renova constantemente, nem que para isso tenha que se fazer tabla rasa dessa mesma pintura. Martinho Costa afirma a pintura dando prioridade ao pictórico e à plasticidade mesmo que o modelo das suas obras sejam fotografias com motivos banais.
           


10-Horácio Borralho Nosferatu Danois, óleo s/MDF, 28X16 cm 2012


11-Horácio Borralho, Deserto Peixe, óleo s/MDF, 28X16 cm, 2012

Comparativamente, nas minhas obras, também elas feitas tendo como modelo imagens na sua grande maioria apropriadas, exploro a tensão existente entre elas. Como Eisenstein, produzo montagens de imagens que podem causar estranheza e choque nas suas associações. Estas produzem cortes nas suas narrativas que podem conduzir a uma tentativa do espectador de criar uma imagem mental a partir de duas ou mais associações de imagens. Em última análise, interessa-me o pictórico e o aspeto feito à mão nas minhas pinturas.




Conclusão


            Foi aqui apresentada uma reflexão acerca da obra de Martinho Costa desde os seus tempos de estudante em que a abstração era a sua linguagem estética até aos dias de hoje, altura em que Matinho Costa consolida a sua faceta de artista figurativo que trabalha recorrendo a imagens fotográficas muitas vezes apropriadas de várias fontes.
            Foi também aqui aflorado qual o interesse de Martinho Costa nas imagens fotográficas e também no tipo de imagens lhe interessa: aquelas que ainda não estão muito resolvidas enquanto imagens, aquelas que são banais, como as que Robert Stern publica no Flickr. Martinho interessa-se pela plasticidade da sua pintura, pretendendo construir algo de estético partindo de imagens banais.
            Abordou-se também o diálogo que Martinho Costa trava com locais encontrados quase ao acaso, muitos deles em zonas recônditas e de difícil acesso, demonstrando que é sempre possível pintar mesmo quando a obra é efémera.
            No capítulo: A Pedreira e a Memória, explora-se uma vertente mais poética e intimista expressando o conhecimento de Martinho Costa a um nível mais restrito, quase familiar. Por fim, foram apresentados alguns paralelismos entre a obra de Martinho Costa com a de Gerhard Richter, uma referência comum, e a minha obra de pintura: a crença na prática da pintura e a utilização de imagens bidimensionais como modelo.
            Martinho Costa é um artista em maturação que trabalha incansavelmente e por isso a sua obra é consistente. É um dos artistas que utiliza a pintura como principal meio de expressão mais promissores da sua geração.



Agradecimentos


            Quero agradecer a Martinho Costa a disponibilidade que demonstrou durante a realização deste ensaio. Na realização da entrevista, no disponibilizar de algumas imagens de obras antigas, mostrando-se sempre disponível para conversar e esclarecer algumas questões que fossem surgindo no decorrer do trabalho.




Bibliografia


Costa, M., 2012. Entrevista com Martinho Costa [Entrevista] (23 novembro 2012).
Facultad de Bellas Artes Universidad Complutense de Madrid Departamento de Pintura, 2003. In: Máster en teoria y prática de las artes plásticas contemporáneas 03. Madrid: FELSAN, Realizaciones gráficas, pp. 118-121.
OPWAY, 2009. Martinho Costa- Reconstrução. OPWAY ed. Lisboa(Lisboa): s.n.



[1] Escola de Nova Iorque- Entre os anos 40 e 50 do séc. XX existiu uma corrente na América também conhecida como Expressionismo abstrato ligada ao crítico de arte Clement Greenberg e que derivava das Vanguardas Europeias. Dentro desta corrente havia o grupo descendente de Picasso e outro que se revia na cor de Matisse.
[2] Gerhard Richter, Artista plástico alemão nascido em Dresden em 1932
[3] Atlas, Uma compilação de fotografias, estudos e maquetes que o artista Gerhard Richter foi acumulando durantes décadas e que agora se converteu em objeto de arte sendo ciclicamente exposta em museus.