A
história é necessária não apenas para tornar a vida agradável, mas também para
dotá-la de um significado moral. Aquilo que, em si, é mortal, atinge a
imortalidade por intermédio da história: o que está ausente, torna-se presente;
as coisas velhas são rejuvenescidas; e cedo, são os jovens iguais em maturidade
aos velhos.
MARSILIO
FICINO, 1676 (carta ao filho de Poggio Braccione).
I. BATALHAS ATÓPICAS E
SEM MEMÓRIA: A EXTRAPOLAÇÃO DE ESQUEMAS HISTÓRICOS ESVAZIADOS
Integrada na
nobre "Pintura de História" - o grand genre segundo a
hierarquia académica formalizada no século XVII[1]
-, a Cena de Batalha serviu, desde a Antiguidade[2],
de monumento comemorativo para narrar, com dimensão épica, as sagas militares
factuais e míticas travadas pelos povos contemporâneos ou ancestrais. Tal
temática era tida em elevada consideração na medida em que exortava a
edificação pública dos ideais civis, mediante mensagens de índole moral e
intelectual, invariavelmente veiculadas com um forte pendor pedagógico e
propagandístico.
Tal reposição
iconográfica no contexto da arte contemporânea gera um inusitado desconcerto.
Dirá o visitante mais esclarecido ao mais incauto que Martinho Costa não poderá
mais exercer o papel "clássico" do pintor que, por encomenda oficial,
acolheu a incumbência de mitografar a glorificação de um dado reino ou país
através da celebração das proezas (colectivas e individuais) granjeadas pelas
batalhas memoriais que hoje preenchem os manuais escolares de História.
Depois das
séries baseadas nas prosaicas imagens de automóveis anónimos em circulação (Gran
Turismo), nos transeuntes captados furtivamente pelo óculo voyeur
das câmaras de video-vigilância (Hall of Fame[3])
e na catalogação ora isolada ora integrada de tipologias de edifícios que
compõem a definição programada do urbano[4]
(feitas a partir do jogo SimCity), Martinho continua o seu ímpeto
respigador de imagens que vêm enformando o nosso universo mediático
contemporâneo.
Finalizada a ostensiva
tematização do pixel nas idílicas paisagens forjadas pelos jogos de
computador (com a série Pastoral, composta por imagens trasladadas do
jogo Age of Empires), o artista transfere a sua atenção para as afamadas
cenas de batalhas fabricadas digitalmente que fascinam jovens e adultos
aficcionados pelo mundo das consolas e jogos para PC. E atende-se que os quis
compreender depois de ter visitado os sites que os catalogam,
reconhecendo que já eram pinturas per se de pleno direito.
Na presente
série, intitulada Völkerwanderung (Deambulação dos povos), Martinho
parece agora pintar batalhas históricas. No entanto, depois de um
segundo olhar compreendemos ser vão tentar determinar o local do evento
mediante um conjunto de presenças significativas, testemunhais. Esta desgarrada
replicação de signos-cliché parece resultar em espelho fiel do imaginário
contemporâneo. Pois não importa onde e quando. O que conta
tão-somente é o espectáculo puro da acção vertiginosa e seu impacto monumental,
as estonteantes movimentações das multidões, o aparato estético dos
enquadramentos, seus laboriosos pontos de fuga e artifícios de proporção que
seduzem o olhar em prol do deleite de penetrar num passado remoto através de
uma espécie de máquina do tempo virtual (para o pintor, dispositivo
alienante altamente calculado, evasão ilusória de uma realidade humana que não
mais satisfaz).[5]
Problematizar o
binómio obsolescência do(s) género(s) clássico(s) da pintura vs. insondáveis
recuperações da Pintura de Batalhas no mundo contemporâneo, é, no caso de
Martinho, transpô-la da ordem dos factos - eventos militares localizados no
tempo e no espaço - para a ordem estrita dos modelos. Ou seja, trata-se de uma
recursividade formal, que generaliza alguns esquemas letárgicos de
representação, considerando-os linguagem vazia passível de ser
instrumentalizada.
Qual o sentido,
logo na obra que inaugura a série, de um fogo de artifício que converte
a reconhecida cena da batalha em significação dessa ruidosa explosão de cor?
Segundo o jovem pintor, esta alegoriza a própria condição do artista na
actualidade. Em jeito de confissão, ele é aquele que "atira uma coisas
para o ar para ser notado, para chamar atenção... ou somente para
entreter". A ironia aqui é ampliada quando este o faz através do embate
militar. A conversão do lançamento de dardos de fogo, em conhecido espectáculo
de pirotecnia, é sintomático do esvaziamento do drama que as formas e
iconografias se prestam nos nossos tempos.[6]
Ou seja, o que conta neste fogo de artifício é justamente a festa, o
espectáculo visual das luzes que iluminam um céu nocturno que, por sua vez,
esconde uma competição interna entre jovens criadores, ainda que situados,
hipocritamente, lado a lado na mesma fileira.
II. A OBLITERAÇÃO DOS PORMENORES
"REALISTAS" DA GUERRA
Martinho, fiel à
imagem digital que transplantou, afasta-se do fulgurante realismo do pormenor
que caracteriza muitas das representações históricas do género. Ao contrário
dos axiais modelos que representam, sem peia nem piedade, a mesquinhez dos
horrores da guerra com todos os seus detalhes mórbidos, nas suas pinturas não
existem as fileiras de soldados impassíveis jazendo mortos no chão[7],
as pilhas de seres transfigurados[8],
a agonia reclinada dos sujeitos trespassados por lanças ou flechas, os soldados
desarmados em pânico enquanto aguardam, no chão, pelo derradeiro golpe deixado
em suspenso[9].
Sem o frenesi dos cavalos derrubados[10],
o arrebatamento dos gestos e manobras dos combatentes, a desoladora destruição
das casas incendiadas e a inquietação entrevista nos corpos contorcidos pela
dor aguda das armas cortantes, o delírio inflamado esbate-se (paradigmático em
Gros e Delacroix) cedendo lugar a uma presença amorfa, mecânica, do corpo
genérico inanimado que exerce uma função programada, onde a convivência entre
fúria e coragem guerreira, e entre temor e desespero estampados nos rostos das
vítimas, se encontra irremediavelmente imiscuída. Até as incipientes manchas de
fumo contrastam igualmente com os memoráveis céus turbulentos que envolviam, em
densa veladura, um longínquo horizonte normalmente composto pelos diversos
matizes da poeira brilhante iluminada pelas impiedosas chamas da guerra[11].
Em Campo
de Batalha #3, a cidadela no alto da colina fica acima da vaga da
poeira (que não se vê!) e do turbilhão (que se imagina, mas que não se ouve!)
feito pela impetuosa progressão da cavalaria. Há neste cenário uma estabilidade
pré-ordenada que afasta do tumulto caótico que define a crueza física da
experiência da guerra. Onde estão os despojos deixados no solo, vestígio
indelével da voracidade da luta: fragmentos de lanças, armas de arremesso
abandonadas, couraças perfuradas, a mancha irregular dos pedregulhos e as
cavidades abertas no solo entre a horrenda mescla de lama e os restos mortais?
Em suma, Martinho presenteia-nos, em tom cinicamente idílico e lúdico, a imagem
requerida da guerra asséptica, clean, sem morte nem sangue...
III. "DENTRO DA CENA": A VERVE INTER-ACTIVA DO JOGO
Nas pinturas de
grande formato de Martinho[12],
não vemos o primeiro plano iluminado como ribalta que integra retratos que
individualizam os protagonistas das cenas. O quadro histórico clássico tinha as
suas leis: poucos protagonistas ordenadamente dispostos na cena, cada qual com
sua paixão claramente expressa no gesto, resolvida numa acção[13].
Por detrás, a habitual massa compacta de soldados, indistintamente integrados
em fileiras pontuadas apenas pela inclinação repetida das armas. Em Martinho já
não se verifica a proeminência de um só plano que subordina os restantes para o
fundo indistinto. Aqui, a recorrência são soldados invariavelmente virados de
costas ou camuflados pelos elmos (a excepção, Campo de Batalha #4,
presenteia-nos máscaras amorfas, impondo o esquema impessoal que devora o
sujeito...). Progredimos com eles, no meio da chusma indistinta, não
identificando personagens (heróis ou vilões).
Ainda que
encarnando um visão privilegiada, é como se estivéssemos pisando o mesmo chão
que aqueles sujeitos sem rosto perpassam. Daí a sensação de envolvência, de
participação no evento, ecoando a supramencionada função do jogo como espécie
de máquina do tempo virtual. Apesar de encontrarmos alguns equivalentes na
história da pintura, o facto é que a contaminação do cinema consubstancia um
tópico incontornável. Por exemplo, em Campo de Batalha #3, os
três cavalos em primeiro plano parecem saltar para o espaço tridimensional da
galeria. O movimento impetuoso dos cavaleiros a galope na nossa direcção
coloca-nos no meio da acção. Somos, nesta cena, o operador da câmara suspensa,
corpo invisível não participante mas omnisciente, colocado entre as duas
fileiras rivais, momentos antes da brutalidade do embate que se aproxima.
Estamos dentro,
somos jogadores, sujeitos da acção. Não se trata da arquétipa perspectiva
panorâmica que nos coloca irremediavelmente de fora, numa elevação[14].
(Pela primeira vez nos trabalhos de Martinho a presença do horizonte é
constante). Experienciamos o ardiloso dispositivo que cria uma expectativa de
sucessão, em cuidada estratégia de concepção da imagem (como ocorre
exemplarmente no cinema), que subjaz a tipologia do olhar móvel e videográfico
como recusa da distância inerente à cenografia, à coreografia teatral, que fora
apanágio da tradição da pintura clássica.
IV. PAISAGENS GENÉRICAS: AS INCONGRUÊNCIAS COMPOSITIVAS COMO VALOR
SIMBÓLICO
O enquadramento
paisagístico em Martinho é, como em qualquer cena que se inscreva na tradição
da representação histórica da Batalha, determinante. São paisagens sim mas algo
agrestes, desoladas e estéreis, por vezes pontuadas com edificações de época
(casas ou fortificações) e outras topografias típicas (o campo aberto da
planície com o fundo acidentado no horizonte - Campo de Batalha #1 e
Campo de Batalha #4 - ou a vista grandiosa do interior das
muralhas proporcionada pelo ponto de fuga da perspectiva euclidiana -
Campo de Batalha #2).
São espaços
genéricos e operativos de encenação. Por isso o repertório resulta
extraordinariamente exíguo: não existem árvores, troncos caídos, manchas de
grama e poças de água, nuvens móveis no céu, choupanas de camponeses esmagadas
pela força colossal dos batalhões. Este leque pouco ou nada variado de soluções
cénicas explana a estrita panóplia de módulos compositivos que se replicam.
Trata-se, no fundo, de uma concepção anti-pituresca do espaço, por
subsumir a infinita variedade de aspectos naturais habituais a formatações
modulares pré-fabricadas, presas na samplagem de elementos-tipo, ou seja,
trata-se de um cenário nada preocupado pelo particular do característico.
Que os
objectivos da arte imperial de outrora, narrativa ou simbólica, eram por vezes
incompatíveis com um tratamento realístico do espaço, torna-se plenamente
evidente nesta cínica caricatura que Martinho tece a vários momentos[15].
É nessa exacta medida que as incongruências formais são, aqui, conscientes e
deliberadas, fruto por um lado da padronização formal, por outro da colagem de
elementos idênticos em contextos variados (muitas vezes até ironicamente
retrabalhados pelo próprio pintor). A replicação passa por vezes despercebida
mas está lá, resultando em adaptação artificial a funções e condições de
espaço. Note-se nas bandeirinhas viradas para sentidos diversos (em Fogo
de Artifício). Logo que tentamos analisar as fontes de luz,
apercebemo-nos igualmente da natureza contraditória das relações espaciais
entre volumes e efeitos de gradação, paradigmaticamente explanado nas sombras
em encostas curiosamente direccionadas para o sentido do crepúsculo (em Campo
de Batalha #3). Ou seja, trata-se de uma luz natural que se comporta
como focos de luz artificial, como se a cena ocorresse num estúdio fotográfico.
Mas Martinho não se fica por aqui. Na mesma obra, Campo de Batalha #3,
uma desproporção gritante entre figura e cavalo presenteia-nos cavaleiros-anões
inverosímeis, jokers medievais de caricatura. Situação reiterada no
"retrato equestre" de anónima armadura, em Cavaleiro #1,
com a energia reminescente do emblemático esquema tipificado em Napoleão Atravessando
os Alpes (1800-1801) de Jacques-Louis David.
Tanto as
edificações como as armas e a indumentária dos soldados remetem para a era
tardo-medieval. Neste ponto, Martinho inscrever-se-ia no método da descrição
exacta, com a máxima precisão histórica, em detrimento da grande manière,
segundo a concepção ideal da Pintura de História à Poussin, em que as figuras
se revestem com os repisados trajes clássicos. Porém, nesta operação de assemblage
feita de elementos prévios - a armadura, a lança, o cavalo, a fortificação
- detectamos incongruências temporais por efeito de acumulação de instâncias
por vezes entre si não exactamente coetâneas, por efeito de uma coabitação que
só um irónico pastiche genericamente descomprometido para com um momento
histórico preciso - datável - autorizaria.
V. O SER GENÉRICO: O SUJEITO INDISTINTO (SEM ROSTO) NA MASSA ANÓNIMA
Em Fogo de
Artifício as tochas ardem e as armas rodopiam no ar. Mas os
"bonecos" de Martinho estão uma vez mais despossuídos de expressão
facial, de direcção do olhar e de linguagem corporal. Estas cabeças sem
rosto obliteram o centro natural dos dramas humanos. Não há moribundos em
obstinada adesão ao destino heróico, nem semblantes desfigurados em atroz
agonia suplicando por misericórdia. Em suma, não há pathos possível (não
podemos interpretar sentimentos, a psicologia ou o drama do personagem).
O sujeito é
submetido à frieza do esquema formal único e constante. São figuras severamente
hieráticas, robôs programados reproduzindo poses e gestos humanos para
significarem, esquematicamente, a iconografia da batalha. Daí resultarem
descaracterizados para se obter deles modelos facilmente repetíveis: o
cavaleiro, o escudeiro, o arqueiro, o porta-estandarte. O que equivale a dizer
que, tal como a topografia e as edificações, o sujeito adere, em calculada
frieza, ao mostruário da estrita panóplia de tipologias elementares[16].
Assim,
resta-lhes apenas cumprir o papel de fantasmas deste teatro adormecido, sem a
cadência ruidosa das espadas, dos gritos de guerra e dos esgares de dor, das
explosões de fogo e das inebriantes cintilações dos archotes, que o cinema é
tão pródigo em mostrar nas superproduções de Holywood, quando herda a função de
enformar o nosso imaginário contemporâneo a respeito do topos temático
da batalha heróica sanguinária (Gladiador, Tróia, Alexandre o Grande,
Trezentos...).
Essa esprectralidade
reforça-lhes o enigma de onde vieram, nem lenda, nem mito ou história alguma.
Onde estão as atitudes e as expressões das figuras "heróicas",
típicas do chefe militar moderno individualizado[17]
revestido com a patética grandiloquência das acções nobres e poderosas
prescritas pelas teoria académica? Nem a recorrente cena pulverizada com os
lampejos dos pormenores dum acontecimento real é visível, como em A Morte do
General Wolf (1770) de Benjamin West, por exemplo, que exprime
sintomaticamente um fenómeno emblemático dos tempos modernos: a
transferência da devoção religiosa para o sentimento nacional.
VI. A ESTIGMATIZAÇÃO DA DIMENSÃO ÉPICA DA GUERRA: O PERIGO SOB A CAPA DO
LÚDICO
Porque é que os
artistas contemporâneos não pintam as grandes batalhas do presente ou do
passado com a dimensão edificante de outrora? Para ensaiar respostas teremos
que nos debruçar sobre as superestruturas ideológicas que determinam a nossa
época: pós-colonial e anti-imperialista. O relativismo cultural
desencantado, que perpassa os discursos intelectuais e políticos dominantes,
visa aplacar qualquer sujeito eleito pelos conhecidos messianismos
providenciais que inspiraram, durante séculos, os ideários heróicos das nações
(ainda que alguns deles continuem espreitando, à espera de um novo ensejo).
Neste pano de
fundo, são sucessivamente convocadas as chagas abertas pela arte oficial que
marcou o período entre guerras. Mais: a Guerra em si mesma, sob o crivo do
imaginário colectivo tecido após o segundo grande conflito mundial, tornara-se
monstruosidade, identificada com imperialismo, ditadura e fascismo. Vivendo sob
o fantasma do Holocausto reitera-se o paradigma da des-idealização da
imagem do advento militar. Fenómeno já seminal no século XIX, com Goya - Os
Fuzilamentos do 3 de Maio de 1808 (1814) - e exacerbado no século XX, por
Picasso - Guernica (1937), Massacre na Coréia (1951). Nasce então
o arquétipo do artista como testemunha de acusação dos horrores e absurdos da
guerra, representando-a já não com a glória do fausto heróico, mas como
carnificina e catástrofe. Torna-se vileza, atrocidade apocalíptica, aviso
premonitório do fim da civilização.
Contudo, nas
batalhas que Martinho pinta não vemos a versão "pesadelo" do conflito
armado visando retratar a brutalidade da barbárie e a ignomínia da degradação
humana. Ainda que resolutamente desembaraçadas do sensacionalismo dramático e
heróico de outrora, as suas cenas são inócuas pelo seu carácter de pura
demonstração, vitrine cénica de eventos "fabricados" em concordância
com as tipologias catalogadas na rede digital. Adquirem, ao invés, um sotaque
"escolar", de figura de manual de história ou de banda desenhada.
Martinho surge
como aquele que pretende rememorar esse passado longínquo da pintura,
constatando a actualização de um olhar já não ferido pela dimensão ideológica.
Instaura, com isto, uma assertiva tomada de posição frente à História de Arte.
Herdeira da tapeçaria descrita na Ilíada que conta, em curiosa situação de mise
en abîme, a guerra de Tróia - fonte mítica dos modelos protocolares da
conduta heróica que perpassou milénios em consecutivas remissões eruditas -, a
cena de Batalha que Martinho apropria acaba por demonstrar como os antigos
esquemas recuperados pelos jogos de computador são aparentemente
"instrumento neutro" fora da época que o fabricou. Lembrando que não
há instrumento de uma época (ou poder), mas quando muito uma utilização
histórica do instrumento. Assumindo-se assim como denúncia de um ingénuo, e por
isso perigoso, gesto de branqueamento ideológico das formas de representação do
passado.
Estas pinturas
de batalhas não oferecem modelos. Mas pintá-las significa dar-lhes,
irremediavelmente, um peso, uma consistência maior perante a coisa vista em
pequeno formato, que logo se desvaneceu no desenrolar do jogo, em prol da mesma
coisa pintada, que permanece, ao assumir a perenidade associada ao medium.
Por oposição à dinâmica cinemática do jogo, Martinho recupera o silêncio
eloquente da arte monumental. Contudo, a solenidade do tema é de imediato
rebaixada depois de sabermos a sua proveniência...
A indiferença
ao histórico espreita para revelar a sua obstinação em seguir o destino da
prestação, signo da máquina, como dispositivo de criação de realidades
destinadas ao lazer, à aventura do imaginário actuante. De um ponto de vista
céptico e desencantado, cínico e niilista, este empreendimento visa repensar as
lógicas que subjazem a sociedade do entretenimento massificado. Neste
ponto, Martinho deslinda o seu dedo acusatório porque constata a futilidade do
trânsito veloz das imagens. Tanto vale este como aquele momento, este ou aquele
lugar, porque carecem de qualquer outro significado que não seja o da imagem
por si mesma, simulacral, exaurida da sua função moral e pedagógica. (A
embriaguez da amnésia aviltra sempre a desfundamentação do presente.) Ao usar
fórmulas obsoletas que, apesar de tudo, ainda ecoam no imaginário popular mais
prosaico, Martinho chega a uma irónica determinação da Pintura de História: a
história não é mais facto memorável e exemplar, tampouco drama ou episódio, mas
sobretudo palco de encenação/ficção incessante. A guerra que Martinho pinta já
não é o evento ocorrido que se pode somente ilustrar ou recriar, mas uma
virtualidade que pressupõe todos os seus possíveis desenvolvimentos e configurações,
términos e resoluções, em aberto.
O
sujeito-jogador ao assumir de empréstimo todas as identidades - de cavaleiro,
arqueiro, chefe militar, estratega - concentra em si todas as responsabilidades
e todos os actos da narrativa. Este fascínio, algo nostálgico, assenta ainda na
nossa ingénita aptidão para agir na história. Neles exercita-se esse campo de
batalha onde se joga a sorte, se testa a pontaria ou se tenta engendrar planos
de estratégia militar. A cena "recriada" não deve mais reflectir as ambiciosas
fantasias dos soberanos, e sim responder ao deleite particular de cada um. O
Homem contemporâneo não pode experimentar outro sentimento senão o das suas
escolhas. Como que por louco acesso de soberba, pode imaginar-se assim já um
qualquer general, bramindo a espada em grito de guerra, acabando de modo
inconfesso por incitar as forças primárias que existem recalcadas em cada um de
nós... (O visitante vê esta cegueira, encontra-se de fora, já não é
jogador mas o seu juiz.)
Bruno
Marques
Doutorando em História de Arte (FCSH da UNL)
e
curador independente (inter-face / Arte Contemporânea)
[1] De
acordo com a formulação de 1667, de André Fébibien, historiador, arquitecto e
teórico do classicismo francês.
[2] Embora, em rigor, para
historiografia especializada (Ver Simon Pepper, "Battle pictures and
military scenes", in The Dictionary of Art (ed. by Jane
Turner) - Londres: Macmillam Publishers Limited, vol. 3, p. 387), o tema da Batalha
Heróica remonte ao Renascimento, existe uma miríade de exemplos desde a
Antiguidade, a saber: os painéis das vitórias militares nos cortejos triunfais;
os relevos narrativos assírios, como a Batalha dos Deuses e dos Gigantes,
do friso setentrional do Tesouro de Siphnos (c. 530 a . C.); os grandes
relevos do arco do triunfo erigido em 81 a . D. para comemorar as vitórias de Tito; a
extraordinária sequência episódica do friso em espiral da Coluna de Trajano
(113 d. C.), que mostra uma série de cenas de campanha triunfantes de Trajano
na Dácia (a actual Roménia); a cópia romana de uma pintura helenística que
figura no mosaico pavimentar que representa a Batalha de Issus ou Batalha
de Alexandre contra os Persas (séc. I a. C.), encontrado na Casa de Fauno,
em Pompeia.
Cf.
Francisco Calvo Serraller (Los Géneros La Pintura. - Madrid:
Santillana Ediciones Generalesd, 2005, p. 9): "Aunque la definición
histórica de los géneros en pintura tuvo lugar en época relativamente tardía,
aproximadamente durante el siglo XVI, el origen de éstos, sin embargo,
permanece íntimamente ligado a la propia invención del arte occidental en la
antigua Grecia."
[3] Nas
duas primeiras séries citadas, o recurso a imagens captadas pelas câmaras de
video-vigilância surge, no percurso de Martinho Costa, não apenas como um momento
primeiro e decisivo de mediação com esta realidade urbana, como também um modo
de ajustar contas com os suportes que a filtram. Com esse gesto, Martinho
consegue converter a entropia que advém da mesmidade do quotidiano num
lugar remoto, já fossilizado em e pela imagem, encerrada assim
para sempre no seu próprio tempo. Por outras palavras, o ritmo desenfreado da
vida resulta contrariado pelo congelamento intrínseco ao medium da
pintura.
[4] Na série que parte do jogo
de computador SimCity Martinho, tematizando a urbanística como
ciência da cidade, pinta o urbano como não-lugar (agora
"materializado" virtualmente) e instrumento prospectivo da vida
social actual. Mediante um aturado inventário averigua a relação entre as
células (edifícios-tipo) e sua co-integração
na teia urbana como todo contextual abstracto. Inquire assim o seu carácter
fortemente tipológico, em que as formas atendem a uma função e uma
espacialidade racionalmente calculadas, celebrando a potencialidade dos jogos
de computador enquanto concretização dos anseios (históricos) utópicos da
cidade como microcosmos simulado de um macro-cosmos a planear e a
construir.
[5] "Gera-se a partir de
aqui uma ficção meta-histórica que se materializa em imagens altamente
sedutoras. O poder do estético manifesta-se assim, fazendo entrar o jogador num
processo de alienação física, mas também da sua própria consciência
histórica." (Martinho Costa, in texto inédito cedido pelo artista, 2007)
[6] Para
Martinho as imagens aqui transplantadas para pintura resultam, num dos seus
estratos simbólicos, na "representação de uma dupla violência: a violência
simulada da guerra, numa época particularmente violenta da nossa historia
ocidental; e a violentação da verdade histórica que se produz quando se
transforma essa barbárie numa coisa bela. Em última análise trata-se de
trabalhar o belo enquanto provocação." (Martinho Costa, in texto inédito
cedido pelo artista, 2007)
[7] Como
na Batalha de Hastings que figura na Tapeçaria de Bayuex (c.
1073-83). Uma guarnição parietal bordada de c. 70 metros de comprimento,
narrando a invasão da Inglaterra por Guilherme o Conquistador. Uma animação
convulsiva registada nos manuscritos ingleses: espécie de historieta
anglo-saxónica, que relata a emocionante conquista de Inglaterra pelos Normanos,
com economia de meios e encanto. Numa
das cenas específicas, os irmãos do rei inglês Harold são dizimados por
soldados normandos cuja parte inferior está repleta de soldados mortos e duma
diversidade de armas e armaduras abandonadas.
[8] Ver
as pilhas de corpos entre os destroços das barricadas em A Liberdade
guia o povo (1830) de Eugène Delacroix.
[9]
Veja-se a morte suspensa por alguns momentos antes do golpe fatal, tanto no Dia
do Massacre de S. Bartolomeu (1572-73) de Giorgio Vasari como em Carga
de cavalaria guiada por Murat na batalha de Abukir (1806) de Antoine-Jean
Gros.
[10] Ver Árabes
em Escaramuças nas Montanhas (1863) de Delacroix.
[11] Ao contrário do que
acontece em A Batalha
de Taillebourg (1835/7) de Delacroix dominado por um fundo de penumbra quase
opaco. Ver também a fumaça negra e densa da guerra em Skimish from Tatars (1867)
de Masksymiliam Gierymski.
[12] De
modo complementar, Martinho apresenta uma secção de soldados individualizados,
em pinturas de pequeno formato, em situação de combate: catálogo de fórmulas
ressoantes nos esquemas ainda hoje reutilizados (nas coreografias do cinema, da
BD e nos jogos para PC), mas aqui desprovidos da carga exemplar, por já
não serem protagonizados por seres superiores, heróis memoriais ou lendários,
mas por figuras anónimas, protótipos triviais de bonecos de jogo.
[13] Ainda que em rigor não se
trate de uma batalha, encontramos num dos mais célebres frescos de Giotto, O
Beijo de Judas (c. 1305-06), o arquétipo iconográfico-compositivo do
aglomerado do conflito armado. Nesta obra, Giotto faz decorrer a acção ao nível
(do plano) dos nossos olhos, resultando numa integibilidade extremamente
eficaz. Evidenciando uma capacidade espantosa em organizar o foco de uma cena
em torno de uma imagem central entre a massa compacta e indistinta de
capacetes. Veja-se outros exemplos paradigmáticos como O Juramento dos
Horácios (1784) e As Sabinas que interrompem o combate entre Romanos e
Sabinos (1794-99) de Jacques-Louis David. Em La rendición de Breda (Las
Lanzas), pintada em 1635, por Velázquez, existe um palco virado para nós,
onde os protagonistas nos olham nos olhos, posando para o espectador.
[14] A Batalha de Issus
(1529) de Albreecht Altdorfer apresenta a visão panorâmica que serve
para tentar seguir as descrições dos antigos quanto ao número e tipo de
combatentes, o que resulta nos dois protagonistas se perderem no formigueiro
dos seus exércitos. Nesta seminal vocação paisagística, a cavalaria, à direita,
mostra verdadeiros combates, enquanto os aspectos geográficos, logísticos e
políticos da campanha foram objecto de minuciosa atenção. Modelo que ressoa,
ainda que com a variante do formato (já não vertical), na extensa e esguia
representação da Batalha de Brodino (1912) de Franz Roubaud
[15] Se por um lado o jogo de
computador oblitera as determinações essenciais consignadas à sua razão de
ser da imagem da Batalha Heróica - (1) comemoração de um celebrado
acontecimento prescrito pela história de um reino/Estado ou pela literatura
mitológica/clássica, (2) a narrativa ilustrativa do evento e a (3) veiculação
de uma enobrecida mensagem moral (invarialvelmente votada à valentia guerreira,
à argúcia militar ou ao espírito patriótico) -, por outro exacerba-a para lá
dos seus limites, quando lhe confere uma grande amplitude de imaginação à qual
esta fora sempre susceptível, pelo extenso alcance dos seus efeitos e o domínio
de liberdade que deu sempre ao pintor.
[16] Não existem os gestos
excessivos, bocas gritantes, olhos esbugalhados, apenas a rigidez desabitada
das marionetas uniformizadas. A figura aparece sempre fechada num mal
disfarçado esquema geométrico que o aprisiona e aniquila qualquer tentativa de
autenticidade simulada. São, assim, bonecos desapossados de qualquer
individuação. Peças de xadrez. Entidades numéricas. Agrupadas, configuram
situações informes, onde os limites entre o indivíduo e o grupo são obliteradas
em nome da agudização do organismo totalizante, como alegoria da abstracta
máquina de guerra.
[17] Ver, por exemplo, A
Batalha de San Romano (c. 1450) de Paolo Uccello, mostrando o chefe das
tropas florentinas, Noccolò da Torentino, montando num cavalo branco durante a
batalha; ou em Carga de cavalaria guiada por Murat na batalha de Abukir
(1806) de Antoine-Jean Gros. Mais incisiva é A Morte do General Wolf (1770) de Benjamin West, seminal do tema
arquétipo do herói morto no campo da batalha, sobejamente "replicado"
em inúmeras obras como, a título de exemplo, A Morte de Pierson (1782-4)
de John Singleton Copley, onde se regista, com todo o brilho, o heroísmo do
jovem oficial ao serviço de uma nação cujas bandeiras se agitam patrioticamente
por cima das figuras.